SóSss! EXTRA: Simon Reynolds e a EBM (Tradução).

Com a publicação deste texto de Simon Reynolds, nós, da SóSucesso!, inauguramos em nosso blog uma seção que pretende trazer traduções que ora vemos como relevantes e, de preferência, ainda não vertidas para o português. Para além de proporcionar aos nossos leitores e público em geral o contato com o universo da crítica internacional de música – universo muitas vezes interdito pela barreira da língua –, queremos, antes, trazer textos que contribuam, por sua relevância e diversidade, para a formação de uma perspectiva criteriosa, analítica, assim como também social.

Simon Reynolds é um jornalista britânico ainda na ativa que, nos idos da década de 1980, deu início a sua carreira em fanzines e na Melody Maker. Reynolds também escreveu para a New Musical Express (NME) e fez parte de um grupo de jovens críticos que tinha como principal diretriz uma perspectiva de análise musical atenta a como questões de raça, classe e gênero afetariam a indústria cultural para além dos clichês e dos círculos viciosos musicais de sua época. Autor de um livro clássico sobre o pós-punk inglês, Rip Up and Start Again, Reynolds se tornou conhecido por seu interesse em gêneros que ultrapassassem a bolha do indie britânico comum à NME. Um de seus trabalhos mais importantes, a coletânea de textos Bring the Noise, reúne 20 anos de escritos sobre hip-hop, incluindo o artigo “Strength by Strenght” sobre a revolução político-sonora desencadeada pelo conjunto de rap Public Enemy e seu discurso subversivo e provocador. Simon ficou também conhecido como um dos primeiros críticos da grande imprensa musical inglesa a escrever sobre as subculturas eletrônicas, muitas vezes criminalizadas e marginalizadas, como a cena rave, o grime e a cultura dubstep. Neste artigo, que aqui traduzimos, intitulado “Sons perturbadores para acalmar a nova era”, publicado em 1991 no New York Times, Simon faz uma análise da cena IBM (Industrial Body Music) – talvez mais conhecida como EBM, na qual se incluem boa parte de seus artistas –, a partir da resenha do à época recém-lançado disco Tiranny for you, do Front 242. Hoje, Simon continua ativo e escrevendo livros como Retromania: Pop Culture’s Addiction to Its Own Past, sobre a tendência retroísta da música pop atual e um livro ainda a ser lançado sobre trap e drill. No Brasil, Simon só possui uma coletânea de textos traduzidos, Beijar o Ceú, livro publicado pela finada Editora Conrad.

 

Sons perturbadores para acalmar a nova era.
Simon Reynolds, 24/02/1991

Tyranny for You, o novo álbum do Front 242, soa como o negócio de sempre da banda belga. O trabalho apresenta suas habituais marcas registradas: bate-estaca frenético, pulsações sísmicas, floreios bombásticos de sequenciador e os cantos aos gritos, exigindo atenção. Front 242 está menos interessado agora nos samples que pontuavam seus tecno-mantras (fragmentos de discursos políticos, pregação televangelista e diálogos de filmes trash), mas mantém a aura de ameaça. Há uma diferença crucial, porém, em Tyranny for You: é o primeiro lançamento do Front 242 por uma grande gravadora. Após quase uma década de “operações secretas” independentes, a banda assinou com a Epic Records e está jogando suas fichas para uma audiência maior. Se antes eles se comparavam a uma unidade terrorista, agora falam de como “o terrorismo aspira à tirania”.

Não existe acordo sobre como chamar o tipo de música que o Front 242 faz: disco industrial, dancecore e euro-body music são apenas alguns dos nomes que os grupos associados a essa sonoridade rejeitam com mais frequência do que aceitam. Mas depois de 10 anos como trilha sonora de uma cena pequena mas em crescimento, essa música pode estar à beira de estourar. A recente virada sinistra nos eventos mundiais pode até mesmo ajudá-la conforme o público dos clubes reage contra o otimismo dessa nova era da dance music e se volta para algo mais sintonizado com os tempos turbulentos que se anunciam. Se a disco é escapista, a disco industrial faz o caminho inverso: não há escapatória. Usando frases de efeito da mídia para criar imagens de conflito e calamidade, essa música quer menos documentar que amplificar a tensão do mundo exterior.

A rede de produtores e consumidores do gênero se estende da Iugoslávia à Bélgica, Grã-Bretanha, Canadá e Estados Unidos. Mas o mercado é dominado por apenas três gravadoras. Em primeiro lugar, está a Wax Trax, um selo de Chicago cuja produção inclui discos de My Life With the Thrill Kult, KMFDM e Front Line Assembly. A imagem pública da Wax Trax passou a ser definida pela figura dionisíaca de Al Jourgensen, o líder dos Revolting Cocks e do Ministry, seu projeto mais mainstream. Depois, temos a Play It Again, Sam, a gravadora belga que foi pioneira na euro-body music com grupos como Front 242, Grumh, Borghesia e Young Gods. A mais jovem das três gravadoras é a Nettwerk, de Vancouver, cuja lista inclui Skinny Puppy, Severed Heads, Consolidated e SPK. As três gravadoras são aliadas informais, muitas vezes licenciando as gravações umas das outras em seus respectivos territórios enquanto os membros de seus grupos frequentemente colaboram em projetos paralelos.

As raízes musicais da disco industrial (se esse é o termo para uma música tão inorgânica e mecanizada) estão na sonoridade euro-disco do final dos anos 70 inventada pelo produtor Giorgio Moroder e popularizada em canções baseadas em pulsos regulares como “I Feel Love”, de Donna Summer, que o público branco achou mais palatáveis que a síncope pesada do funk. Outra influência crucial é o grupo alemão DAF, do início dos anos 1980, que substituiu os arranjos suaves e exuberantes da disco sinfônica por pulsos rigorosos e precisos de sintetizador.

O lado “industrial” do gênero se originou com grupos pós-punk como Cabaret Voltaire e Throbbing Gristle, cujos membros acreditavam que o punk deveria perturbar cada ouvinte em particular e não simplesmente conclamar a juventude por meio de slogans políticos. Desafiar a audiência passava por alterar estruturas musicais tradicionais, experimentar novas tecnologias e explorar assuntos que solapavam “verdades” reconfortantes. No single “Headhunter”, o Front 242 traçou um paralelo desconcertante entre práticas comerciais agressivas e guerras tribais. A estética industrial também se baseou em produção cultural fora da música, em particular nas visões apocalípticas de escritores como William Burroughs e JG Ballard. De Burroughs, a música industrial tomou a obsessão com o controle (as letras expressam paranóia sobre redes de vigilância e manipulação mental subliminar) e a técnica de cut-up (através de citações justapostas aleatoriamente e frases de efeito da mídia). Por exemplo, tem-se a faixa “Funkhadffi” de Front 242, que incorpora partes de discursos de Muammar el-Qaddafi, o presidente da Líbia. De Ballard, a música industrial tem assimilado o interesse pela sexualidade aberrante e pelo terror.

A disco industrial é em geral fascinada pelos extremos da experiência humana e, em particular, pelos extremos da psicologia masculina: o fora-da-lei, o sobrevivencialista, o terrorista, o assassino em série, o ditador, o tecnocrata. Sua aura é sobretudo masculina. O adjetivo chave é “hard” [tradução livre: “duro”], como se vê em “batidas duras”, “viver de modo hard”, “hard core”/”extremo”. A dança é menos uma válvula de escape pela diversão que um teste de resistência física. Slogans típicos da disco como “botar o corpo pra trabalhar” são entendidos literalmente. Os ritmos que remetem à repetição de uma série de musculação e a repetição incansável evocam uma atmosfera de triunfo aeróbico; assim como a força que se ganha levantando pesos, a força aqui existe apenas para flexionar a si mesma.

Outra influência importante são os Futuristas italianos, o movimento artístico do início do século XX cujos manifestos celebravam a tecnologia e traços estilísticos brutais ao mesmo tempo em que denunciavam aspectos feminizantes da civilização. Como os Futuristas da primeira leva, as bandas de disco industrial mantém uma relação ambígua com o totalitarismo. Algumas fazem alusões mais explícitas. O grupo alemão KMFDM fala de seu sonho de um “fascismo positivo” – um exército de jovens marchando em direção ao amor e paz procurando construir uma sociedade em que imagens de violência sejam banidas. As letras de Front 242 propõem uma filosofia sobrevivencialista que já foi chamada de “micro-fascismo” e que se funda em organizar mente e corpo como um estado policial.

Mesmo que não se suporte a música, a disco industrial fascina porque exibe o espectro completo da patologia masculina – do rebelde sociopata sem causa à idolatria do poder adotada pelo fanático. Como o rap, a disco industrial fornece uma expressão hiperbólica de dois impulsos masculinos opostos. De um lado, tem-se o fora-da-lei revoltado contra Deus e cujos arroubos fundam-se no espectro que vai da egomania à autodestruição. O segundo impulso é a vontade de criar ordem diante do caos. O melhor representante dessa segunda variante é o grupo Consolidated, de São Francisco. The Myth of Rock, um álbum brilhante, ataca a noção da rebeldia do rock, que eles diagnosticam como um sintoma de atraso do desenvolvimento. Consolidated encara o rock como um beco sem saída retrógrado cujo maior efeito é manter as pessoas longe da possibilidade de mudar o mundo. O grupo admite com pesar os aspectos reacionários do imaginário totalitário do qual emergiu (eles falam pejorativamente de “supremacismo branco aeróbico”). Apesar de sua música partilhar de muito do fervor brutal do som industrial, Consolidated extirpou os aspectos perniciosos do som industrial, e nesse processo distanciou o som de seu lado infame.

UMA AMOSTRA INDUSTRIAL.

Algumas das melhores gravações de disco industrial atuais (clique no amarelinho).

Dysfunctional Relationship, Consolidated.
Essa é a faixa com o balanço mais convencional e mais palatável ao público consumidor do LP Myth of Rock, que mistura disco industrial e hip-hop de modo formidável. A letra ironiza a linguagem pseudo-científica usada por certos consultores e terapeutas.

Too Dark Park, Skinny Puppy. A fim de abrir os olhos e excitar paixões, Skinny Puppy enfia a cara do ouvinte no horror da vivissecção e do ecocídio. O álbum apresenta um arsenal de batidas frenéticas.

Supernaut, 1,000 Homo DJ’s. Ainda por chegar no mercado, essa é uma versão acelerada do clássico do Black Sabbath, uma blitzkrieg de guitarras que sugere o que seriam os Stooges se eles pertencessem ao século que está por vir.

Tyranny for You, Front 242. Aqui o grupo está mais romântico e relaxado, mas ainda faz um som opressivo.