CLÁSSICOS SóSss!: Robertinho de Recife, Robertinho no Passo [BRA, 1978].

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Um clássico é, na acepção popular, uma obra que se cristalizou no gosto coletivo através da memória, do passar do tempo, e que às vezes ganha tanto peso que ninguém mais se arrisca a lhe lançar um olho crítico. Não pra gente, bebê. Pra SóSucesso!, clássico é aquilo que permanece rico, potencialmente cheio de interpretações, mesmo que não tenha virado estampa de camisa pra hipster.

E é nesse entendimento que temos o prazer de inaugurar a nova sessão de clássicos da SóSucesso! com o disco Robertinho no Passo, de Robertinho de Recife, um álbum delirante como aquilo que o espera, leitor.

Segure firme, e se segura senão tu cai, simbora!

 

Atenção: abaixo segue três textos diferentes escritos cada um por um autor diferente.

 

Inovando com velhos ídolos.
Dr. Araújo SóSucesso!

Eis que finalmente me vejo desafiado a resenhar algo que soa familiar, mas fico paralisado (mentira, isso sempre acontece, mas o modo como aconteceu aqui foi inédito). Antes de continuar, já aviso que este parágrafo é uma digressão em relação ao disco resenhado, mas não posso deixar de aventar que, assim como para mim, para muitos outros pensar sobre música passa menos pela experiência direta do som que por discursos acumulados na memória, muitas vezes reforçando preconceitos cujos danos, na melhor das hipóteses, passam pela reprodução de lugares-comuns. Eu preciso falar disso, porque foi uma mentalidade causada pela influência nefasta desses discursos que tornou tão difícil achar o norte do texto, o qual, no fim, veio justamente da coisa mais empírica do mundo: uma crise de abstinência de Rivotril; estava sem minhas pílulas há dois dias e resolvi ouvir este disco e não consegui, era muita informação, ficava ansioso como se tivesse tomado café forte. Café forte como certos tipos de jazz, que agem nos sentidos através de um mecanismo de ação similar: uma profusão de notas rápidas formando motivos e improvisos.

Pegando standards do frevo de rua e usando instrumentação atípica, Hermeto Pascoal e Robertinho de Recife criaram algo diferente mas ao mesmo tempo fiel ao estilo-base. Só um tradicionalista ferrenho há de dizer que a guitarra, o instrumento que é boa parte da cara deste trabalho, adultera a essência do frevo. “A ESSÊNCIA DO FREVO”, essa coisa que fica numa caixinha trancada a sete chaves.

Vítima de gente chata (hoje nem tanto, e na real pense num instrumento mimado, fetiche ainda da garotada), a real é que a guitarra é um instrumento versátil, cheio de possibilidades de timbres, que permite tocar notas e acordes sucessivos rapidamente. Não é à toa que ela tem sido usada para recriar e expandir, e não meramente emular, tradições musicais mais velhas que ela, através do jazz fusion e de guitarristas de heavy metal que cultuam Bach, para ficar nos exemplos mais óbvios.

O maior problema deste disco é que os solos de Robertinho menos recriam do que emulam as cascatas de notas da seção de sopros das orquestras de frevo de rua. Há, sim, uma preocupação com timbres no sentido de escapar ao que se espera de uma obra de frevo típica, e há até mesmo uma passagem na ótima faixa-título que é uma cacofonia apoteótica inesperada que remete ao free jazz. Talvez a maior proposta deste disco seja fazer algo que obviamente tem uma dívida para com o frevo mas cuja instrumentação é uma novidade. O único instrumento de sopro é um saxofone; os timbres são em geral elétricos e eletrônicos.

Já o porquê da raridade desse disco, talvez ele tenha se perdido um pouco na memória por ter sido percebido como inclassificável, apesar de que reitero do alto do meu conhecimento empírico, que resolveu hoje se revoltar contra os melindres de discursos enviesados, que isto tudo é frevo assim como sei que estou usando um sapato e não um tênis porque, se for correr agora, vou ter dores no pé, mas se tiver que ir a uma festa de casamento, ele vai me causar menos problemas que o meu par colorido que tem molas em baixo das solas. Vê? Eu basicamente defini a diferença entre tênis e sapato descrevendo-os do modo mais banal possível, e não indo atrás de uma ontologia da indumentária do pé, ainda que se possa discutir que música é uma coisa muito mais complicada. É e não é, e esse é tema para outros textos, mas, por fim: e o sapatênis? O mundo não é tão complicado, mas a gente sempre dá um jeito de se perder buscando.

Mudando de assunto e me enfiando em território perigoso, me arriscando a ser considerado retrógrado, porque minha intuição pode estar enviesada também, e falo sério. Não é tanto uma tentativa parcial de explicação do desaparecimento desse disco da memória coletiva (que pode ter mil razões), mas é algo que eu sempre quis falar sobre o fenômeno mercadológico do frevo, cuja origem, obviamente, mesmo que eu esteja relativamente certo, certamente não é tão singela: o eclipse do frevo fora do Carnaval. Pois bem, aqui em Areias, mas também em todos os lugares em que morei, ouvir música é geralmente um evento social, e a música deve permitir que um ouvido esteja na conversa e outro nela. Aquilo que torna o frevo uma música perfeita para embalar a diversão de rua, frenética, de embriaguez coletiva, é a mesma coisa que o torna indesejado cá no bar, na frente das casas, ao longo das ruas: as notas se sucedendo rapidamente e a falta (em alguns casos) de vocais formam uma textura monótona para quem não estiver prestando atenção. Nesse sentido, também, mesmo que essa não seja uma definição mas um mero ponto em comum, o frevo se aproxima do jazz.

Digressei horrores hoje, já é mais que hora de um último exame do disco, desta vez mais de perto: Robertinho no Passo tem excelentes momentos, a maioria sendo de composições de Hermeto. Em “Caboclinho”, por exemplo, a instrumentação atípica se justifica com perfeição, transformando uma linha melódica que já é interessante num crescendo de intervenções instrumentais, cada qual ao redor da melodia original, até que se atinge uma textura densa, por onde não passa uma agulha, mas em que cada instrumento permanece distinto. “Abel”, outra composição de Hermeto, é a maior e mais diferente das outras. Cheia de espaço e suspense, é um respiro que encerra um álbum frenético de modo esparso e emocionalmente carregado. A faixa-título, já mencionada, é um frevo desvairado e contagiante. O resto é inferior: faixas interessantes, bons frevos híbridos, mas a guitarra de Robertinho é constantemente apenas duplicada pelo Moog tocado por Hermeto. A maioria delas são versões de frevos de rua e as novidades timbrísticas não bastam para criar algo realmente diferente do material original. Eventualmente, Robertinho sai-se com um solo que não introduz nem um bom motivo melódico nem um improviso que esquente a música. Sabe solo genérico de banda de hard rock? Pois é.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Miles Davis, Bitches Brew [YouTube, Disco Completo] | Bach | John Coltrane, Ascension [YouTube, Disco Completo] | Meme do Playboy Sapatênis dos EUA | “Conheça a História do Bairro de Areias” [Facebook da FUNDAJ] |

 

De Recife. Isso mesmo: DE Recife. Não entendeu?
Mateus SóSucesso!

Robertinho no Passo é um passo gigantesco de um músico que teve o rock como guia. O lance aqui é frevo, ou quase isso. O lance aqui é Hermeto Pascoal – e o próprio Robertinho de Recife, óbvio. Na real, não dá nem pra dizer onde começa um ou outro nessa mistura e caos do disco.

Robertinho é, sem dúvida, um dos maiores músicos e produtores brasileiros da história. Lembrado aqui ali pela inventividade na guitarra, talvez o álbum solo que tenha imortalizado ele seja o Metal Mania, um disco de metal que abriu as portas pro estilo feito no Brasil, pro mundo, um feito que ganhou a admiração de músicos como Andreas Kisser, do Sepultura, por exemplo.

Contudo, no Brasil, Robertinho ficou bem conhecido por canções como “O Elefante”, do Satisfação, um disco… new wave(?!). Satisfação é um dos primeiros discos brasileiros de new wave, lá do comecinho do rolé, ainda em 1981. Só que rola um detalhe: o som aqui é totalmente “tropicalizado”, tem pegada de sobe desce ladeira que saca fácil quem foi pra Olinda no carnaval. Definitivamente, Satisfação não é uma continuação acrítica do que rolava fora do país, como rolou com outras galeras no período, tipo o Legião Urbana do começo, que chupinhava Joy Division e Smiths, por exemplo…

“Tropicalização”. Normal pra um dos que mudou a cara da música de carnaval eletrificando o frevo nos trios baianos dos primórdios, uma revolução que taí até hoje.

Em termos criativos, Robertinho certamente tem a estatura de um grande como Robert Fripp, um dos King Crimson, guitarra absurdo, compositor radical, foi tanta coisa além do prog, até new wave também.

Se a gente não fosse tão colonizado, daria crédito pro tamanho de Robertinho pro Brasil. Até porque eletrificar essa mudança profunda no carnaval e no frevo não é qualquer coisa, até porque o carnaval é um dos nervos centrais da cultura nacional. Não é, não?

É bizarro passear na internet e não encontrar material farto sobre ele e o Robertinho no Passo, só aquelas menções protocolares nem fede nem cheira. “O Brazil não conhece o Brasil”. O Brazil destrói o Brasil, melhor dizendo – vide o incêndio da Cinemateca há bem pouquinho, o genocídio indígena em curso… Não sei nem o que dizer.

De qualquer modo, ano passado fizeram uma série documental fazendo jus a esse grande. Só que não deu pra ver – plataforma paga, mais uma pra add aos boletos (cringe!), daí, sabe comé?, eu, sofressor.

Robertinho no Passo é um piripaque auditivo, não é algo fora de seu tempo, tem tudo a ver com aquele momento, mas é um ET total no frevo. Só se faz jus a ele indo à meia-noite no Largo do Amparo pra chorar diante do Homem da Meia-Noite, ser enfiado no empurra empurra (“Ih, fudeu! / O Homem apareceu!”), pernada fatal de capoeira, uma senhora do meu lado olhando pro Homem como num feitiço, o calunga sei lá quantos metros com o rosto imóvel, só que, parece, ele tá lá falando com você, Laroyê!

“Toda vez que vou no bar de Abelardo [mudei o nome] fico vendo aquela imagem dos Donzelinhos [bloco das antiquíssimas de Olinda] e fico pensando se eles existiram ou não, tipo como no hino deles que diz ‘Donzelinhos com saudade imensa / Pede licença para regressar’. Vey, regressar pra onde, porra hahaha?! Tá ligado que o fim do bloco foi com eles indo até a beira do mar lá nos Milagres, devolvendo o estandarte pras águas? Velho, quando digo isso chega me arrepio. Tem alguma coisa nessa onda que eu não sei nem dizer, vey… Velho, não gosto nem de falar do fato de não ter tido carnaval esse ano, isso tudo me deixa puto, mas mais ainda triste, não quero nem falar, me passa a cerveja…”, disse em vários momentos um brother, o parágrafo costura conversas inclusive de antes da pandemia.

Sol do caralho, minha calvície rachando, “Oh, meu jovem, tou afim de fazer uma onda com o frevo, algo que ponha Art Ensemble of Chicago no estilo, queria fazer um som que soasse caótico como caótico é o carnaval pra mim”, joguei essa proposta prum brother, mas falso: carnaval é ordem, 2 e 2 são 5, “Bora? Sei lá, sinto falta da galera experimentar mais no frevo, sem essa convenção da tradição, que é uma prisão, né?”, dizia antes de… PQP, QUE É ISSO?, eu, Mateus, ouvi Robertinho no Passo e vi que o que eu queria tinha sido realizado de forma totalmente literal muitas décadas antes(!). Pretensão imensa de reinventar a roda, “falta da galera experimentar no frevo”, sou um otário mesmo, pff. Enfim, é seguir e botar pra moer, meu velho, dar seguimento nessa ideia. Tou reforçando aqui meu compromisso contigo, visse, brother compositor?, mas – caiu a ficha – mantendo o respeito, pisando leve, se ligar pra não hipsterizar

“Por que tás se arrumando, Rayana?”, dizia minha amiga pra irmã dela, empolgada, já beba, euforia, carnaval, “Ouxe, quer pôr um glitter também não, Leilane?”, responde a irmã, “Que porra nenhuma!!”, Leilane vai enfiando o pé num tênis velho jogado lá no sobrado de Olinda, o dobro do pé dela, “CARNAVAL É GUERRA, PORRAAAA!”, sai correndo pro vuco-vuco, e as trombetas paran-paran-paranran-paran com o tarol repicando enquanto todo mundo vira sardinha num prazer arretado, Leilane desaparece. Um dia volta. Ela sempre volta do nada. É que ela é música.

Daí, segue praquela segunda-feira, Tambores Silenciosos, uma epifania furiosa me atropela, de lá pra cá muita coisa mudou dentro de mim, dou graças ao Ylê de Oyá Togun. Sim, foi o carnaval que deu esse giro em mim, agradeço à gira, axé!…

Esse texto é Zazinha, minha tia-avó (RIP) do Bairro de São José / Recife, bairro do frevo e do Galo da Madrugada e do Saberé, me levando pros blocos do Centro (respeita, visse, millenial?, né “bloquinho” não, sai daí), e é engraçado como você cresce e se lembra daquela fantasia de Peter Pan costurada por ela, minha quase mãe, com meus irmãos tudinho de super-herói comigo pirraia <3 .

Robertinho no Passo é um pedaço de Recife no mundo. Ou seja, é de Robertinho porque é de Recife. E também é muito Hermeto. Hermetinho de Recife.

DO Recife não. Flw vlw.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Robertinho de Recife, Metal Mania [YouTube, Disco Completo] | “Andreas Kisser, do Sepultura, exalta influência de Robertinho de Recife no rock brasileiro” [WSCOM]Robertinho de Recife, “O Elefante” [YouTube, Ao Vivo na TV] | Legião Urbana | Joy Division | The Smiths | “Robertinho do Recife, lenda do rock, foi fundamental na modernização do Carnaval”, por Juca Guimarães [R7] | Robert Fripp [Wikipédia] | King Crimson | The League of Gentlemen | Elis Regina, “Querelas do Brasil” | | | Escolinha do Professor Raimundo [YouTube] | “A misticidade que envolve o Homem da Meia Noite, símbolo do Carnaval de Olinda”, por Cleide Alves [Jornal do Commmercio] | “O que significa Laroiê e Mojubá” [Templo de Religião Africana Bará Adague Oyá Bomi Abassé de Exu Rey, Facebook] | | | “Regresso dos Donzelinhos”, por Coral Mocambo [YouTube] | Art Ensemble of Chicago | Gal Costa, “Como 2 e 2” | I Love Cafuçu (argh!) | “Noite dos Tambores Silenciosos encanta milhares de pessoas no Pátio do Terço” [Cultura.PE] | Mãe Lúcia de Oyá, Yalorixá do Ilê Axé Oyá Togun (PE) | “Criado por amigos apaixonados pelo carnaval de rua, Galo da Madrugada completa 41 anos de fundação”, por Luana Nova [G1 PE] | “A Turma do Saberé no Encontro dos Amigos do Bairro de São José (parte 1)” [YouTube] | Gregório Duvivier |

 

Um dia, um frevo: Robertinho no Passo e a morte do Bairro de São José.
Augusto SóSucesso!

O que acontece em Robertinho no Passo, “Não é magia nem tecnologia”, é só frevo, Hermeto, Roberto, Israel Semente, Itiberê, Hernan Torres, Pelé, Boré, e muito mas muito som e fúria.

– E não é isso que faz o frevo, meu filho?

– Será?

Parece que não.

King Crimson, Soft Machine e outros parangolés gringos, também.

Moogs, Oberons e Synths! Isso é um acinte, criança!

Robertinho tá virado no cachorro louco, a guitarra parece não caber nos acordes, o baixo e a bateria também. De tanta velocidade, o disco parece ter sido feito em um acelerador de partículas quânticas tipo LHC – coisa que nem existia na época. Frevo quântico? Mas freeescow! Freeeevo!!???

Multicultural Apropriation. Chama o Napalm Death, aí, menino! Olha o sapo cururu, Mautner, no compasso do jazzcore. Me segura, senão eu pogo.

A capa deveria ter sido desenhada por Jack Kirby. Trilha sonora perfeita para a leitura de Novos Deuses escutando Novos Baianos. Caetano mordendo o beiço de raiva! Calma, Caê, esse passo você também sabe fazer. Araçá Azul, o nome mais bonito do medo e de disco também.

Imagine você no corpo de um viciado em metanfetamina no meio das ladeiras de Olinda ou na Rua da Concórdia e o Soft Machine comendo no centro, tocando na frevioca. Henry Cow e Vassouras passando, Brian Eno e os Batutas de São José.

Isso não é música, é delírio, meu amigo Abel.

Cabocolinho atômico, como minha vó Lelê já dizia. Hoje ela está no céu com sua irmã Irene. Meu Deus, a música é perene. 1978. Um ano depois do lançamento acontecia um fato importante da minha vida, o meu nascimento. O do Passo está na capa. Dançarino cósmico chutando a sombrinha da música das esferas para lá. Sem Bach e sem Mozart, só Hermeto da Rua das Águas Verdes, meu Bairro de São José. O frevo me acompanha desde a mais tenra idade tocando na porta da minha casa, no beco do Ramos, na minha cara. Sevy do Pierrot, Badia do Pátio do Terço (onde dizem que o frevo nasceu). Rua da Concórdia e a eterna discórdia entre Donzelos e Saberé. Caralho. Tudo isso no que foi um dia, um bairro. Meu bairro. Barro que moldou a forma do meu existir e de pensar. Joseilton, Cláudio, Felipe, Fabinho, meus amigos de infância e a primeira lembrança desfilando de palhaço no Pierrot de São José. Calor cansaço na roupa quente de palhaço; meu avô cego escutando o ensaio da orquestra na porta de casa. Eu choro, e choro com essa lembrança, mas não quero voltar aos tempos de criança, Ataulfo. Tudo era lindo, mas agora é mais bonito na distância de me afastar da dor e da ausência, de não poder estar mais ali. Turunas da Mauricéia, meu avô tocando em um dos uns milhões de “bandos da lua” que surgiram no rastro de sua influência. Choro. Que lembrança. Morreu enquanto consertava um violão que até hoje carrego como herança. Nenhum sofrimento vale as lágrimas de uma criança, já dizia o poeta, mesmo não sendo eu mais aquele menino. Mas eles estão aqui, o bairro, meu avô e a esperança de um dia mesmo que em sonho ouvir sua voz rouca tentando me ensinar a tocar violão, sem acordes, só notas, bordões e respostas. Aranhas que nunca irei alcançar. Lembrança. De jogar bola na Dantas Barreto com medo dela ir para embaixo de um ônibus ou explodir nos espinhos das barrigudas. Praça Sérgio Loreto, o dia que fiz um gol de placa mesmo sendo zagueiro. Depois de driblar a estátua que tinha no meio do campinho, chutei inacreditavelmente a bola no ângulo. Tá lá!

E foi lá que nasceu o frevo, e é dali que sempre saiu o Galo da Madrugada até virar um mero veículo de merchandising de cervejas. Você veja, isso não volta mais. Nevermore, Mr. Poe! Nem Bar do Índio, nem Jô Drinks, nenhum desses horríveis puteiros, mas aonde os adolescentes rebeldes iam, não atrás de putas, mas de um baseado e de um Artane® para ficar doidaço, malucão, vidrado e sair do tédio que eram todos os 364 dias antes do Galo sair. Ficar aranhando, pisando em estrelas, achando que a qualquer instante o céu vai cair. Mago Edésio, Bulu, Du, os caras mais velhos que você aprende a respeitar. Alguns mortos, outros fudidos. Pelo menos um cometeu suicídio que nem o de Israel Semente, que um dia escutei o poeta Erickson Luna descrever em uma mesa de bar saltando da vida para entrar na história. Estórias ou histórias secretas da música pernambucana que muitos insistem em contar de forma jornalística, acadêmica, careta. Foda-se a verossimilhança! Contem a verdade como ela foi, tosca, incompleta, quebrada, como só um poeta pode narrá-la. O resto é história pra dormir boi.

Desculpem, minha velhice e ranzinzice, mas não tenho como descrever esse momento sem falar de um tempo em que nada mais está. Nem Luna, nem Bulu, nem meu avô, nem Gustavo, meu primo, todos suicidados pelo álcool ou pela vida, pendurados em cordas ou em vícios que nunca conseguiram vencer. Era apenas para falar de um disco mas a forma traduz o rito, e não posso descrever o abismo sem antes deixar ele me perceber.

P.S. O Bairro de São José, conhecido inicialmente como Ilha de Antonio Vaz, é um dos mais antigos do Recife. Situado no centro da cidade, ficou relativamente preservado até o início da década de setenta do século passado, quando o prefeito Augusto Lucena, com incentivo de Gilberto Freyre, decidiu destruir de uma tacada só 400 casarões, 11 ruas e uma igreja secular, a dos Martírios, construção de 1796, uma das primeiras a abrigar uma irmandade de homens negros. Essa mutilação para a construção de uma avenida de menos de 1 km, com o objetivo de encurtar o trânsito em poucos minutos, atendia, na verdade, um único objetivo, a especulação imobiliária, ao transformar “muquifos e pardieiros”, nome dado pelo prefeito às casas e sobrados em que inclusive meus avós moravam, em lojas e centros comerciais. O certo é que na madrugada de uma noite em 1973, os “tratores da modernidade” iniciaram seu trabalho de demolição, sepultando não apenas a igreja, mas o futuro de um bairro.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

King Crimson | Soft Machine | “O que foram os Parangolés?” [art|ref] | Grande Colisor de Hádrons [Wikipédia] | Napalm Death | Jorge Mautner | Alceu Valença, “Me Segura Que Senão Eu Caio” | Jack Kirby [Pinterest] | “Novos Deuses” [DClopédia] | Novos Baianos | Caetano Veloso, Araçá Azul [YouTube, Disco Completo] | Henry Cow | Clube Carnavalesco Misto Vassourinhas [Wikipédia] | Brian Eno | Batutas de São José [Ouvindo Frevo] | Nascimento do Passo [Wikipédia | Mozart | “Bloco Pierrot de São José” [Prosas] | “A resistência do Pierrot de São José” [Diário de Pernambuco] | “Badia: a grande dama do carnaval de Recife”, por Cláudia Varardi [Pesquisa Escolar, FUNDAJ] | Foto do Donzelos de São José [flickr] | “Eduardo Chera homenageia Bloco Turma do Saberé Tradição” [Câmara Municipa do Recife] | “Por uma discografia nordestina: 1927” [Outros Críticos] | Galo da Madrugada [Wikipédia] | “Ivinho, da Vila dos Comerciários para Montreux”, por Abílio Neto [Overmundo] | “Erickson Luna, poeta das madrugadas”, por Eduardo Waack [Revista de Los Jaivas] | “O assasinato de uma cidade”, por Urariano Mota [La Insígnia, Cultura] | “Intervenções urbanas na cidade do Recife: umaigreja no meio do caminho de uma avenida”, por Luís Domingues Nascimento [Professor da UNICAP e UFRPE, Artigo Científico] |

 

>FICHA TÉCNICA:

Robertinho no Passo é:

Hermeto Pascoal – Piano Fender 88, Poly Moog, Oberheim, Sax Soprano.
Robertinho de Recife – Guitarras, Ecoplex, Mutron III, Octavider, Talk Box, Big Muff, Mutron II.
Herman Torres – Baixo, Badstone, Mutron II.
Israel Semente – bateria, caixa, tímpanos.
Pelé – Pandeiro.
Itiberê Zwarg – Baixo (faixas 1 e 8).
Sergio Boré – Percussão.

Faixas e compositores:

1 Robertinho no Passo (Hermeto Pascoal).
2 Nem um talvez (Hermeto Pascoal).
3 Vassourinha (Mathias da Rocha – Joana Batista Rocha).
Fogão (Sergio Lisboa).
4 Caboclinho (Hermeto Pascoal).
5 Frevo dos palhaços (Robertinho de Recife).
6 Arrecife (Robertinho de Recife).
7 Come e dorme (Nelson Ferreira).
8 Mundo novo (Hermeto Pascoal).
9 Abel (Hermeto Pascoal).

Gravadora: CBS.

Arranjos e regências – Hermeto Pascoal.

Mixagem – Manoel Magalhães, Carlos Lemos e Hermeto Pascoal.

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Foto BG / de fundo (Homem da Meia-Noite): Bobby Fabisak/JC Imagem.