COLABORAÇÕES SóSss: Levino Ferreira, por Mateus Otaku.

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O grindcore por vezes tem humor e é um troço bem particular. Como boa parte do universo da música extrema, o material base é o abjeto, só que no grind a avacalhação e a galhofa dão tempero extra aqui acolá à gororoba. Ou seja, o grind é um estilo podre de ridículo (dã) – vide o show do Gutalax no Obscene Extreme Fest, ou praticamente tudo do Obscene Extreme Fest. Bem, nem todo grind se enquadra nessa sentença generalista, mas uma parte que surte algum alarido por aí, certamente.

Mateus Otaku tem essa vibração com o tipo de música e arte que você não levaria pra aquela sua festinha de debutante (ou pra aquela tertúlia do seu irmão Bozo), e nisso ele se alinha com a SóSucesso!. Música pra nós é boemia, paixão (reforça paixão) e, claro, humor ferino que ataca o elitismo ou o “bom-gosto”. Não obstante, a diferença dele para nós é que ele é um estudante e… um millenial (argh).

Conhecemos Mateus nos rolés da cidade (Recife), inclusive os que já promovemos, e como ele mesmo se auto-descreve, é “um cara negro criado nas periferias e morros da Zona Norte”, um cara que foi introduzido à música via o lado barulhento e pesado da coisa, mas que, mesmo partindo disso, nunca quis se resumir a essa fatia do ouvido. Tanto assim é que ele tá aqui falando de Levino Ferreira, um compositor de frevo que não tá aí nas bocas e na praça pública, mesmo tendo um bloco de carnaval com seu nome, o Escuta Levino – o que, embora sendo uma iniciativa importante pra caramba, não diz tudo, porque na prática uma pá conhece o bloco mas nem tchuns de ir atrás da discografia deste compositor, já clássico e falecido. Ou seja, assim como nós, mesmo com suas preferências, não existe impedimento pra Mateus desafiar o ouvido. Mateus atira pra todo canto. Tanto ele quanto nós não queremos nem participamos de alguma bolha sufocante, hermética e impermeável, mania nos dias de hoje. Apois acreditamos que este jovem moço tem um belo futuro pela frente – desde que haja futuro… E afirmamos isto porque sim.

Uma dúvida que pode surgir: por que, ora bolas, esse pseudônimo ridículo como sobrenome, “Otaku”? Pois é, como muitos criados no zeitgeist atual, e como o próprio pseudônimo denuncia, Otaku ama animação (num geral), e desenhos japoneses (por conseguinte). Ou pelas próprias palavras dele pra gente: “(…)diz aí que eu pago pau pra tudo que é desenho que se mexe, e que por isso fui bater na indústria japonesa, atrás de coisas como Cowboy Bebop e Berserk”. Mas ao contrário desse bando de guri que usa imagem de desenho japonês no avatar, Otaku não é ancap, bolsonarista ou simplesmente um verme fascista maldito. Assim como a sua SóSucesso!, Otaku caminha à esquerda.

Bem, como vão perceber, tudo isso de algum modo transparece nesse primeiro exercício crítico de Mateus, que decidiu discutir o frevo usando o gancho daquilo com que ele próprio já tá familiarizado, isto é, o punk, o rap, o metal… Já inclusive antevemos uma alcatéia de tradicionalistas e puristas que devem tá aí entronchando a cara. Fazer o quê? Nem tudo é pra você, fera. Segue o baile, djow.

Enfim, se, assim como nós, você topar a aventura de se enveredar por aquele beco que sua familícia não aconselha, chegue junto. Você vai gostar, temos certeza, minha brother e meu brother!

Boa leitura!

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Gutalax, ao vivo no Obscene Extreme Fest [YouTube] | Obscene Extreme Fest [canal do festival no YouTube] Bolsonaro e o gado, cartum de Aroeira | Luiz Felipe Pondé | “Gucci Cruise 2020 / Featuring Gucci Mane, Sienna Miller and Iggy Pop” [YouTube] | “Clube Escuta Levino e Os Guerreiros do Passo na rua da Imperatriz no centro do Recife, semana pré” (pré-carnavalesca) [YouTube] | Zeitgeist [Wikipédia] | Otaku [Wikipédia] | Cowboy Bebop [YouTube, legendado, todos os episódios] | Berserk [YouTube, legendado, todos os episódios] | “A loucura dos defensores do livre mercado em 10 memes”, por Anarcomiguxos |

 

Levino Ferreira: música, suor e cor.
Mateus Otaku.

No carnaval do ano passado fui ver o show do Emicida no RecBeat, sem saber de nada em relação ao que ele já tinha produzido, conhecendo apenas uma música que ele fez como contribuição para a trilha sonora do filme O menino e o mundo. Cheguei lá e tal, um monte de universitário e universitária se cumprimentando que bom que você está aqui é a sua cara, papo vai papo vem, o show começa. A linha da apresentação foi a mesma do início ao fim: passar uma mensagem de harmonia para o público que foi escutar ele, entregando exatamente o que aquele pessoal esperava no mesmo tom planejado e conforme os moldes. Nunca me senti tão deslocado num show. Não é segredo pra ninguém que o rap circula com facilidade nas periferias brasileiras desde Racionais e por isso já estava familiarizado com o estilo há anos, mas ainda assim não me sentia convidado a estar ali. Parecia ser necessário pagar o ingresso de adotar a postura do perfil universitário para poder pertencer àquele espaço, uma espécie de ou compra a idéia do jeito certo ou não é pra você. “Porra, esse cara não tem uma música agressiva, véi?…’’. É claro que a questão nunca foi ir atrás de um flautista de Hemelin, que através de sua música mística encanta e unifica toda a suposta classe popular homogênea. Só que uma hora é preciso voltar atenção para algo que dê conta de dialogar, mesmo que um pouco, com as contradições do real né.

Indo nessa onda, existem contextos em que a conversa de visões contraditórias chega a adquirir a posição de marco das expressões populares em determinadas culturas. Isto é evidenciado principalmente naquelas de origem africana, cuja presença foi nomeada de “chamado e resposta’’, e se realiza pela interação espontânea entre as declarações de um falante e as expressões-resposta do ouvinte. Esse elemento se fez presente como um padrão generalizado tanto em rituais religiosos como na participação democrática de sociedades que bebem desta fonte, além de sua ramificação no que se entende por música black: jazz, blues, o próprio rap, entre outros.

Tudo isso tem a ver com Levino Ferreira, compositor recifense de frevo de rua (aqueles que não possuem letra) da primeira metade do século 20, aos quais algumas de suas músicas ainda permanecem na memória dos mais jovens até hoje. Eu conheci ele há alguns anos procurando na internet umas músicas do ritmo no YouTube e parei pra pensar que na real fica até difícil de visualizar o cara como um clássico da música popular pernambucana. Mesmo que o frevo já tenha se estabelecido há algum tempo e com certa naturalidade no cenário musical da região como um bicho que faz parte do habitat, quase ninguém sabe citar o nome de alguma música dele – isso é quando sabem que aquela música é dele, ou quando sequer ouviram falar seu nome em algum canto –, apesar de ser autor de um dos frevos mais reconhecidos ao primeiro toque, “Último Dia”. Até mesmo a escolha de Levino pra nomear um bloco carnavalesco de Recife – o Escuta Levino – passa pela questão de ser um autor que já em 1998 “andava meio esquecido’’.

Isso não é nenhuma desvalorização do compositor, pelo contrário: só por ter músicas que mesmo depois de mais de 60 anos ainda são reconhecidas pelo povo mostra que tem algo que presta aí. O negócio de um autor consagrado ser pouco reconhecido pelo nome fala mais de como o frevo é tratado aqui, jogado no bolo da “época de carnaval’’ e confinado a isso. Também tem a ver com aquela fala bem comum dessa mesma época sobre “ir pra Olinda’’, mas não é pra qualquer Olinda que se vai: a parte que tem ruas não asfaltadas e que vive faltando água direto (ou seja, a Olinda que não é pra gringo ver) não conta pra ser mencionada, porque na real se fala em ir pra Olinda™, aquela onde tá a “mata” que em determinada parte do ano (e só nesse tempo) fica aberta para uso irrestrito da população, na promessa de consumir a experiência que é sempre a mesma coisa na mesma época. Como é a totalidade da experiência que importa, não tem porque ir atrás das diferenças, um tratamento como de algo exótico na real.

É daí que Levino entra, e logo de cara se tem a impressão de que algo não tá tão bem encaixado na alegria tradicional que se espera do frevo. Levando em consideração que o ritmo é bastante exigente por impor ao corpo de quem dança uma adequação às quebradas drásticas e ritmo frenético, algo destoa na música dele. Suas músicas são pautadas em várias desacelerações quase brochantes que acabam desenhando um quadro feito por quebras ainda dentro da pegada dançante que é o frevo. De maneira geral, fico com a impressão de que sua obra é um grande crescendo que não se preocupa em chegar em lugar algum (e nem precisa, na verdade) num contraste a duas das músicas mais populares do gênero, “Vassourinhas nº1”, do bloco Vassourinhas (Composição: Joana Batista Ramos e Matias da Rocha¹), e “Olinda nº 2”, do Clube Carnavalesco Misto Elefante de Olinda (Composição: Claudio Nigro e Clóvis Pereira) . Aqui é válido apontar que das 14 músicas que compõem o disco O Frevo Vivo de Levino, cinco aludem a algo tristonho: “Não Adianta Chorar’’, “Retalhos da Saudade’’, “Última Troça’’, “Lágrimas de Folião’’ e “Último Dia’’. O trabalho aqui é de uma pegada menos interessada em ser uma ode a algo grandioso e mais próxima a uma conversa de rua ao fazer referência a sentimentos menores, numa experiência mais íntima em que o lado momentâneo e finito da coisa é realçado. A viagem, man, é que o cara consegue fazer isso sem pompa de subversivo conceitual por adicionar essas coisas no meio do frevo de rua, ele mais adiciona do que subverte mesmo, onde a proposta invade pela pele e introduz a sensação única de um estranhamento quente e alegre que, na minha hipótese, parte do povo mais que brasileiro, latinoamericano.

Até aqui dá pra dizer que tem gente que fez parecido: o compositor paraibano de carreira recifense, Lourival Oliveira, tem um frevo chamado “Lágrimas de Clarinete” onde é possível traçar esse paralelo, mas a questão é que em Levino ainda fica sobrando espaço para alguma outra coisa, ele é mais “do mal”. Esta impressão lembra uma experiência que tive recentemente: parei para escutar o London Calling do The Clash só neste ano, e pra uma banda que é tanto associada ao punk custei a sacar o que de agressivo ou “rasgão’’ tinha ali (natural pra quem acha que Cannibal Corpse é muito fofo por bater tanto na tecla da agressão que perde a graça), mas desde o começo ficava com um estranhamento de que tem algo aí que não aparece logo de cara, que motiva a dedicar um tempo a mais para se ligar onde está a viagem do negócio. A experiência com Levino é similar, quando o tom de acelerar e morgar dentro da mesma música não se preocupa de te entregar um produto já pronto, parecendo o som ambiente de uma metrópole que, pelo menos aqui, conversa bem entre si, tipo “Romeu e Julieta” (a comida).

É uma sensação de proximidade escutar esse cara, véi, porque é justamente desse trabalho junto com o que “é feio” e “não presta” (as aspas aqui não deveriam ser necessárias, mas pra evitar que uns zé tabacudo possam entender que eu tô desmerecendo e não ressaltando com essas palavras, fui obrigado a colocá-las) que vai trazer pro chão o que se faz de grandioso, e desse jeito fazer o que tem valor ser acessível. É do espaço pra raiva, tristeza, abuso e catinga de cerveja que já faz parte do imaginário de quem vive numa vida de quebrada que, no meio, surge uma forma de afeto no frevo de Levino Ferreira que é de uma beleza leve absurda, cara, e que também não aposta que quem escuta seja ingênuo de engolir alguma pala sem digerir. Ao mesmo tempo que o cara faz isso emergir pela experiência do contato com a música, não é algo sufocante como se ele tivesse o objetivo de injetar uma dose emotiva de algo que ele quer que você sinta. Inclusive é isto que possibilita a retomada da noção de “chamado e resposta” citada anteriormente, já que a presença de um tom melancólico junto da alegria do frevo remete a um trabalho junto com as condições da vida que se tem, instigando em quem escuta a visão do que se tem de divertido pra fazer num lugar que usa o “feio” como matéria-prima da vida, e algumas vezes justamente por isso cria uma ternura que nasce da forma mais acolhedora possível.

Já uma banda nada a ver de doom metal chamada Candlemass também tem a nóia de apostar nas reações do público, sendo praticamente uma autocaricatura ao usar performances góticas ridículas feitas justamente para não serem levadas à sério, e é claro perceber isso já que a postura deles é algo como “Deixa da tua frescura e escuta que isso é massa também”. E a ideia é essa mesmo: pegar o que é caricato e tirar onda junto com aquilo, sabendo que no meio dessa podridão tem um achado que não se vê em canto nenhum. Como dizem os poetas Edy Rock e Mano Brown: “E de onde veio os diamante? Da lama”.

Levino pode não ter de cara aquele galanteio charmoso, mas envolve bem mais do que aquela postura adotada pelo frevo que se propõe a ser uma contemplação abestalhada e velha que existe só porque alguém diz que tem que ser assim. Me perco imaginando sobre a presença que isso poderia ter na identidade de rua pernambucana, mas demandaria, hoje, um trabalho de base que não tem medo de cara feia e sujar o pé de barro pra se concretizar, ao contrário daquela educação tradicional chata pra caralho, cujo único fim é a contemplação estática da cultura que se acessa só de vez em quando. Como dizia a frase inicial do clássico jogo de terror de Playstation 1, Silent Hill: “O medo do sangue tende a criar o medo da carne”. Isso que dá trancar a arte dentro de Ministérios da Cultura.

Nota de Rodapé:

1- A maior parte dos compositores de frevo eram de origem negra, o que deve ser levado em consideração sempre que se pensa a presença do ritmo na cultura popular pernambucana. Isto não foi diferente com os compositores do frevo mais conhecido do estado, apesar da pouca documentação referente às suas vidas e legado. Visando sanar essa lacuna, foi produzido um documentário sobre Joana Batista Ramos, mulher negra e uma das poucas mulheres compositoras de frevo, intitulado Joana: se essa marcha fosse minha.

 

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Emicida | RecBeat Festival [Site Oficial] | O menino e o mundo, de Alê Abreu [YouTube, trailer] | Racionais, “Vida Loka, Partes I e II” | Perfil universitário | O Flautista de Hemelin [Wikipédia] | Chamado e resposta [Wikipédia] | “No Recife, bloco exalta a obra de Levino Ferreira”, em LeiaJá, carnaval 2020 [Wikipédia] | “Vassourinhas nº1” | “Olinda nº 2” | “Zaccarias e Sua Orquestra em ‘Lágrimas de Clarinete’ de Lourival Oliveira, 1961” [YouTube] | The Clash, London Calling | Cannibal Corpse | “Receita de goiabada cascão com queijo”, por Suzana Lucchini“Call and Response as Critical Method: African-American Oral Traditions and Beloved”, por Maggie Sale | Candlemass | Racionais, “Negro Drama” | Silent Hill 1, Intro [YouTube] | “Joana: se essa marcha fosse minha”, de Tactiana Braga, Camerino Neto e Maíra Brandão [YouTube, filme completo] |

 

>FICHA TÉCNICA:

Disco: O Frevo Vivo de Levino [BRA, 1976].

Todas as faixas são de autoria e foram compostas por Levino Ferreira.

Execução: Orquestra de frevo de José Menezes.

Produção: Leonardo Silva.

Gravadora: Fábrica Rozenblit.