Conde Só Brega, “Cheli” [BRA, 2004].

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REMENDO: A gente se propõe a escrever crítica, a gente vai e pesquisa, só que daí o fato é que os TRÊS textos abaixo de TRÊS PESSOAS DIFERENTES que tiveram semanas pra fazer o serviço contêm uma omissão que é pura patacoada: “Cheli” é uma versão de “Ilyne”, música lançada pela banda Exile One, de Guadalupe, no álbum Face Au Public, em 1975, e composta por dois de seus membros: Gordon Henderson e Julie Mourillon. Não fosse pela imediata reação de nosso amigo Victor Zalma, que conhece muito de música caribenha, talvez a gente morresse sem descobrir e, pior, dando tapinha nas costas um do outro e dizendo “pouhan, que pesquisaço esse teu, véi!”, “que nada, tu que sois foda, sabe tudo da parada”. Pois é. Ajuda ser a Internet terreno minado de desinformação e, dado o preconceito contra o gênero, a música brega sofrer de modo particularmente grave com isso? Claro que não, fera, e a velocidade com que Zalma apontou o erro mostra que há canais sim pra se tentar minimizar os danos e o mais óbvio e certo é ouvir música, conhecer as coisas na origem, se cutucar pra conhecer mais e, consequentemente, não ficar à mercê de fichas técnicas furadas. Em tempo: os textos permanecem inalterados, porque nada mudou de nossa opinião. “Cheli” continua com todos os seus méritos, inclusive porque tem uma pegada diferente da original. Sabe a versão de Bauhaus pra “Ziggy Stardust” de David Bowie? “Cheli” é meio que essa vibe. A estrutura é a mesma, mas o calor e o tchans é outro.

 

Atenção: abaixo segue três textos diferentes escritos cada um por um autor diferente.

 

Faço de meu hit o que quero: Conde é mais que “Cheli”.
Augusto SóSucesso!

Dentro da série de textos sobre one hit wonders (algo como um só sucesso nas paradas, em português), se torna um tanto injusta a ilustre presença do nosso ex-candidato a prefeito do Recife, o único e indômito Conde, vocalista da banda Só Brega. Conde e a Só Brega foram junto com Kelvis Duran, Vício Louco, Kitara, Labaredas, Banda Lapada e a Banda Metade de Michelle Melo, um dos responsáveis pela explosão comercial do brega em meados de 2000, em um movimento tão forte que ajudou a estourar a bolha do preconceito ligado ao ritmo, impulsionando-o dos estúdios de fundo de quintal e das festas de associações e clubes dos subúrbios para as festinhas e hostes da classe média. Se hoje um Shevchenko e Elloco tocam no RecBeat ou Musa do Calypso e Sedutora já são considerados artistas e divas pop, muito se deve a esse quase-movimento que envolveu uma associação única entre produção, distribuição e divulgação só possível a partir de certos avanços tecnológicos. Um gravador de CD e uma impressora criaram toda uma indústria de auto-pirataria de fazer inveja à onda de mixtapes do hip-hop americano. Aqui, faz-se mister uma breve explicação e digressão sobre o caráter da música brega no Recife: apesar de nos anos 2000 chegar a ter seu próprio festival e tudo (o Abril pro Brega, em uma genial paródia ao Abril Pro Rock), o brega no Recife não teve esse caráter de movimento unificado por uma estética homogênea como o tecnobrega do Pará, ainda que compartilhe de suas origens como indústria de massa gambiarrística, mas antes foi uma conjugação de forças que já vinham se alinhando há quase uma década e que tem como origem dois marcos específicos: as fitas k-7 piratas de cúmbia/salsa/merengue vendidas no sebo do INSS da Av. Dantas Barreto e as festas da Cubana no Alto Santa Teresinha e do Clube das Pás no Prado – todas na cidade de Recife.

Ainda me lembro, no auge dos meus 18 anos, indo comprar vinis de rock nesse sebo e por acaso ser agraciado com a escuta de alguns sons latinos pela primeira vez. Sons que mais tarde iriam se tornar bastante familiares a partir de um combo de curiosidade, disponibilidade e preços acessíveis dos vinis: Bienvenido Granda, Perez Prado, La Sonora Dinamita, Los Graduados, Trini Lopez, entre outros. Todos estes artistas acabaram por se imiscuir em minha formação roqueira e abrir a derradeira porta mais tarde para bandas como Só Brega, Labaredas, Walter de Afogados e Banda Camelô. Não era uma questão de ser cult, mas era a mais derradeira comprovação da veracidade do pequeno slogan que a indústria fonográfica brasileira encontrou nos anos 70 para promover seu produto a um status mais elevado: “Disco é Cultura”. Foi essa cultura de comprar e colecionar discos de vinil que me fez conhecer esses universos completamente diversos daqueles que eram esperados para um fã de punk rock. Frequentar o sebo do INSS, mais do que qualquer outro nos anos 90, era como estar em uma aula de world music: do brega ao forró, passando pelo universo da música romântica francesa e espanhola, guaranias, música de terreiro, sambas de toda ordem e o hard rock farofa dos 70 e 80 (de Nazareth a Dire Straits) e muita mas muita cúmbia, salsa e merengue.

Se por um lado, tínhamos como mentor punk Will da Vinil e seus ensinamentos acerca do universo em três acordes, era nos sebos do Centrão que nos deparávamos com a diversidade da música popular, que despertava a curiosidade menos pelas capas do que pelas sonoridades traduzidas na pergunta: quem é esse que está tocando? Essa era a chave para todo um aprendizado inesperado acontecer, pois cada sebista era um profundo conhecedor não só do valor, mas também das características musicais de seu produto, verdadeiras Wikipédias ambulantes, que infelizmente com a fetichização do vinil acabou por criar, hoje, uma casta de exploradores que se disfarçam de conhecedores apenas para lhe empurrar um disco que custou cinquenta centavos por cinquenta reais. Era comum você encontrar um Johnny Cash raro importado ao lado de um disco do Crass, tudo por cinquenta centavos.

Mas deixando a nostalgia e retroísmo de lado, o que tudo isso tem a ver com “Cheli” e o Conde do brega da Só Brega?

Acontece que no meio desse caldeirão de cores, nomes e sons, vez ou outra tínhamos a oportunidade de escutar a já então crescente cena do brega recifense. Apesar da memória falha, tenho quase certeza de escutar Labaredas pela primeira vez no INSS e muito provavelmente devo ter ficado ombro a ombro com o Conde do Brega, pois nessa época, em que gravadores de CD eram basicamente inexistentes, assim como os estridentes e onipresentes carrinhos de vender CD que povoaram o Recife nas primeira décadas do milênio (diga-se de passagem os maiores divulgadores e distribuidores do brega na cidade), a forma que esses artistas se utilizavam para divulgar sua música era a fita k-7 vendida no sebo do INSS, ou seja, além de influenciar na música desses artistas, esse espaço perdido entre prédios, no fim da avenida que leva do nada a lugar nenhum, acaba por tornar-se um centro de distribuição e divulgação desse novo brega menos “carbonário” (de Carbonos, a banda que tocou em 8 de 10 discos de brega dos anos 70/80) e bem mais caribenho.

A música do Conde é fruto desse processo e “Cheli” com certeza um dos seus mais bem acabados produtos. Além da forte influência de cúmbia e merengue, “Cheli” compartilha um pouco do espírito indômito de um Tito Puente, com seus andamentos progressivos, viradas de tempo e pausas dramáticas. Sem dúvida uma grande canção que junto com “Não Devo Nada a Ninguém”, “A Vida é Assim” e “Saudade de Rosa” (versão de mesmo nomes da de Bartô Galeno, minha preferida) fazem da obra do Conde um grande festival de hits da Só Brega, pra vocês!!!

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Eleição municipal do Recife em 2004 [Ano de candidatura do Conde Só Brega, Wikipédia] | Kelvis Duran | Vício Louco | Kitara | Labaredas | Banda Lapada | Banda Metade | Shevchenko & Elloco | RecBeat [Site Oficial] | Musa do Calypso | Sedutora | “Mas Afinal o que é uma Mixtape?” [Matéria do site Caboindex] | Abril pro Brega [Facebook] | Bienvenido Granda | Perez Prado | La Sonora Dinamita | Los Graduados | Trini Lopez | Walter de Afogados | Banda Camelô | “Disco é Cultura: um tempo de incentivos fiscais para a indústria fonográfica” [Sobre o slogan “Disco é Cultura”, no site IMMuB] | Nazareth | Dire Straits | Os Proletários [banda na qual Will da Vinil era vocal, YouTube] | Johnny Cash | Crass | Carrinhos de vender CDs  | “Merecia o Guinness? Banda brasileira pode ter gravado 50 mil músicas”, por André Barcinski [Blog do Barcinski, UOL] | Tito Puente | Conde Só Brega, “Não Devo Nada a Ninguém” | Conde Só Brega, “A Vida é Assim” | Conde Só Brega, “Saudade de Rosa” | Bartô Galeno, “Saudade de Rosa” |

 

Conde Só Brega é esse Caribe no meu peito.
Mateus SóSucesso!

Recife é um pedaço do Caribe no Brasil, e o Conde Só Brega é um nó disso. Engraçado que essa tese não é abertamente defendida em praça pública nem é consenso. Porém, curiosamente descobri essa citação de Chico Buarque sobre uma fala de Gabriel Garcia Márquez:

“Gabriel Garcia Márquez, que foi um dos que me convidaram quando fui pra Cuba pela segunda vez participar do Festival Califiesta, defende a teoria de que o Brasil, da Bahia para cima, faz parte do Caribe”.

O Brasil tem essa mania feiosa de ensimesmar-se. É como se tudo brotasse daqui, da genialidade única do nosso povo. Isso é mais ou menos compreensível, afinal o país é um continente, daí fica naquelas de achar que é mais continente que o restante do continente no qual tá.

A música brega não é uma cria brasileira ilhada. Aqui ali a gente acaba descobrindo uma ou outra música que é versão de uma outra gringa, tipo “Dizem que Sou Louca”, da Banda Kitara, versão de “Loca” de Thalia – mexicana –, ou “Baby Fala pra Mim”, da Musa do Calypso, que é versão de “Quelqu’un M’a Dit” de Carla Bruni – franco-italiana. Não entender isso é achar que o povo é um bichinho engaiolado na “nação”, além de esquecer o papel da indústria cultural no meio de tudo. Mais que isso, à última letra, quem escuta rádio é um apátrida na real.

“Cheli”, do Conde, tem puxada de cúmbia. Aliás, o som do Conde é um entreposto da música cafona da década de 1970 com ritmos latinoamericanos no qual já ali, na década de 2000, apontava pro melody que apareceria tempos depois, sub-gênero do brega que iria se desenvolver com bandas como Musa do Calypso e Sedutora, no qual o romantismo e a melodia (daí o nome) dão o acento. Recheada por uma tecladeira oitentista radiofônica, “Cheli” é um dois pra lá dois pra cá regado pelo chiado da simulação de maracas num Yamaha. Resumo de muito daquilo que era vendido nos piratões de Casa Amarela – bairro popular de Recife –, onde a salsa de Célia Cruz convivia com Agnaldo Timóteo num mesmo fluxo, “Cheli” é música de salão. Nela, há uma relação direta entre o que se escuta com a maneira com que se dança. Pra captar qualé a do som é preciso sentir o cheiro, o suor e o corpo daquele ou daquela com quem se baila – é preciso “chambregar”, como ainda se diz aqui. Tudo aquilo que eu não aprendi, frustração de criança.

Cidade patusca, Recife é feita de música a toda hora. Até por isso, já foi considerada uma das cidades com maior poluição sonora do Brasil – olha, já vi em algum canto que essa poluição era na real uma das maiores do mundo, mas não encontrei nenhuma referência na internet, daí só sobra a megalomania em linha reta da minha memória de nativo, fica o dito pelo não dito. Andar por Recife é ter música sem parar nos ouvidos. Bem, isso era um pouco mais forte antes da pandemia, até porque tudo ficou menos intenso, muita gente morrendo, falta de grana, galera mais em casa, é inevitável que as ruas fiquem um pouco mais vazias, mas não totalmente – é, seria ideal que fosse totalmente, só que fazer o quê? As coisas não estão mais as mesmas, não dá pra estarem. Bem, de qualquer modo, a rua ainda é o espaço do frege e do som alto.

Andando pela cidade você escuta, hoje, muito brega-funk, é verdade. Mas ao andar pela periferia, aqui acolá a gente se depara com um coroa ouvindo uma cúmbia, um merengue etc. Nunca entendi muito como isso se deu, donde isso nasceu etc, mas é bem comum ouvir ritmos do restante da América Latina nos morros e comunidades de Recife. Domingão, música da porta pra rua, sempre alta, pessoal conversando na frente de casa, às vezes uma bebida com um tiragosto, alto-astral.

O Conde é em parte resultado dos hábitos auditivos locais, em que autores como, tipo, um Evaldo Braga, cantor romântico do qual ele já se declarou fã, são reverenciados. E para além, “Cheli” possui, assim como várias músicas latinas, aquele chiadinho no tweeter das caixas de som evocando o pé que arrasta no chão enquanto se arrasta o parceiro ou a parceira nos limites da pista. No meio de tudo, o vozeirão do Conde é todo dengo e angústia, “é muita letra!” e sofrência. E por cima, vai e vem o som dos metais temperando, mais parece que tão te empurrando pra sair dali da quininha do salão, enchendo de endorfina, ensolarando o rosto em um sorriso aberto e fácil. Eu… no cantinho… querendo dançar, sem conseguir, empulhado porque fico receoso de pisar no pé da moça, toda vez que me meto a fazer isso sempre piso, frustrado mas alegre, como na época em que ia prum fliperama ver os outros jogarem, mas sem nenhuma vontade de fazer o mesmo pra não levar um “Adugue!” de Ryu do Street Fighter, pirando nos outros guris fazendo arrelia com os bonequinhos. Tonto de felicidade, me vejo chamando por Cheli na cabeça, e ali, ao longo desta festa imaginária, aquela moça na minha frente mas que eu nunca vou conhecer porque não consigo dançar juntinho. Poxa, como ela é bonita, deve ser massa puxar pra lá puxar pra cá sentir o cabelo dela bater na minha cara aglomerando com todo mundo fazendo o mesmo (antes da pandemia), mesmo que não rolasse nada demais, a gente ao menos teria um primeiro contato, eu ia sair do flerte – ia, né? –, ei, aquele outro figura teve… “coragem”, putz, ele sabe dançar bem, putz, sou um merda, vey… E o Conde chamando por Cheli, muito bem, poeta, obrigado por me acompanhar na assistência, trazer nessa noite de solidão essa companhia, vaga e etérea mas companhia…

Terminou tudo, voltei sozinho, meio bêbo, feliz pela noitada (hipotética mas típica), como foi bonito, gosto amargo de Teatchers com água de coco, acho que em algum momento de amanhã vou vomitar, será?, capotei…

“…sem você não sei viver, Cheli, meu amor, meu bem-querer, Cheli!”

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

“Desvendando o Caribe no Pará”, por Bernardo Faria [Site BregaPop] | Banda Kitara, “Dizem que Sou Louca” | Thalia, “Loca” | Musa do Calypso, “Baby Fala pra Mim” | Carla Bruni, “Quelqu’un M’a Dit” | “Música brega: uma breve história (para ler e ouvir)” [Site Cidadão Cultura] | Sedutora | Celia Cruz | Agnaldo Timóteo | “Pesquisa traça o mapa dos bairros mais e menos barulhentos do Recife”, por Ciara Carvalho [Jornal do Commercio] | “Hit Contagiante – Felipe Original feat. Kevin O Chris | FitDance TV (Coreografia Oficial)” [YouTube] | Evaldo Braga | “Variaciones de maraca de cumbia colombiana” [YouTube]“Hadouken!!! Street Fighter 2 Black Belt Ryu” [YouTube] | “Clube da Sudene: Banda Labaredas” [YouTube] |

 

Conde do Brega, “Cheli”. É fácil (e é fácil mesmo).
Aroldo SóSucesso!

Falar de música popular procurando objetividade quando se é mais um amante (ou amador, cuja etimologia e significado atual também têm a ver com “amor”) do que um teórico sistemático pode dar uma dor de cabeça enorme. Porque a gente carrega uma paixão que tende a interferir em nossa percepção de áreas cinzentas, de reconhecer qualidades em território inexplorado ou distante do coração.

O amante/amador tem que se vigiar porque tende à apologia do que se cristaliza como objeto de amor, e ao desprezo, que pode virar ódio, do que lhe soa vulgar e eventualmente vil. É óbvio que estou falando de e por mim, mas, por convivência e observação, conheço o tipo. A força nefasta da polarização que já se dá na origem, ou seja, quase como essência, do universo da música pop, que nasceu/cresce parcialmente sobre uma estrutura mercadológica (não à toa a artificialidade é uma ameaça constante), precisa ser desconstruída o tempo todo por uma modulação do coração: há que se abrir ao novo, mas também de entender que o que não bate às vezes não é para bater mesmo, porque simplesmente não se casa com nossa sensibilidade, e, mesmo assim, conseguir compreender seu lugar no mundo. É necessário mirar-se no musicólogo que busca objetividade, mas também e principalmente se dar conta de que a objetividade tem limite. É isso que permite não gostar de trap mas reconhecer o fenômeno estético e tratá-lo com respeito onde o respeito for devido (e eu sei que essa última sentença foi construída de modo tautológico, esse é um preço da subjetividade).

Mas, veja também, existe algo objetivamente podre em certas coisas, e isso também tem de ser admitido. Um exemplo é certa música sertaneja contemporânea que é fruto de uma violência social que se retroalimenta de perversão estética. Uma música que se assume mesquinha, sem vergonha de dizê-lo, mesmo que com outros nomes. Ser um disseminador não só da mediocridade, mas também de uma mentalidade bovina e predatória ao mesmo tempo, é a condição que permite a alguém como Wesley Safadão ser alçado ao sucesso comercial.

O Conde do Brega também é problemático, mas há coisas que o redimem. Há algo de nobre em sua música. Há algo de orgânico, legítimo, em como essa música e seus agentes interagem com o público. “Cheli” é sobre uma mulher desejada e só, ok; a letra não reverbera para nada além de Cheli, o objeto de paixão do eu lírico da canção, mas quem pode assegurar que uma lágrima sentida já não caiu sob o efeito de ouvir “Cheli”? Essa consideração sobre a carga emocional da música do Conde é subjetiva, claro, mas há uma intenção de querer expressar algo íntimo, enquanto que a música de Safadão, como comparação, é tão pré-pronta que se emocionar com ela beira uma parafilia. É preciso, enfim, ir além da ojeriza cristalizada a que, no meio de “Cheli”, haja um recurso promocional que consiste em uma voz anunciando o nome do artista, para um estado de contemplação que, quem sabe?, permita que se ache até graça (com alguma condescendência, claro, mas no bojo essa risada ao que se considera absurdo também se redime um pouco de seu crime porque também pode ser empática). Para quem, como eu, presenciou bailões em um clube do Recife e se irritou em trabalhar sob certas circunstâncias sonoras, mas também riu e viu bêbados se abraçando e se beijando ao som de um repertório com função pré-definida, em sequências literalmente previsíveis (mas não mais que numa festa gótica) compostas de bregas ortodoxos/antigos/clássicos, Tim Maia, ABBA, soft rock, cumbias e outros ritmos latino-americanos (e etc.), pode-se dizer “isso não é pra mim” sem incorrer em ódio pedante e, logo, até bater o pezinho com algum tipo de apreço instintivo (que pode virar afeição a longo prazo), sem ruminar sobre os detalhes formais que incomodam às vezes por razões mais irracionais do que se gostaria de admitir.

De resto, “Cheli” tem méritos menos óbvios. É possível sentir isso (ou “perceber”, mas amantes precisam desconfiar sempre da própria objetividade, independentemente da configuração entre gosto e objeto em cada caso) na atmosfera quase épica em que a história vaga sobre a idolatria romântica de uma figura feminina se dá. O Conde se limita a pouquíssimas palavras, insistindo apenas que pensa em/ama Cheli, sobre um instrumental lânguido, dançante mas morno (não pejorativamente), que convida tanto à dança quanto a ficar prostrado em reminiscências românticas ao redor da pista enquanto se beberica algo. Perfeitamente digna qualquer situação.

Então, voltando um pouco: primeiro, o apaixonado consciente de suas limitações inerentes talvez se revolte tanto com o que lhe soa vil ou vulgar ou medíocre, porque o nada, o que não causa qualquer comoção, também é potencialmente vil para ele quando não se enxergam as áreas estéticas cinzentas. Até que, num segundo momento, as fichas começam a cair. No mundo de quem ouve Conde regularmente, ou até melhor, religiosamente (porque música é um tipo de religião), existe uma introspecção extrovertida. O contexto original é gregário, mas toda audição continuada de qualquer coisa tem uma surpresa em potencial (inclusive ódio redobrado, vide sertanejo de direita). Se se pode acusar a ideia de não dever a nada a ninguém e portanto supostamente ser livre para o prazer sem culpa de oferecer escapismo que não altera substancialmente o sufoco do cotidiano de deveres e penas, também pode-se dizer que, NO MOMENTO em que se ouve Conde advogar o hedonismo, DE FATO nos inebriamos e não devemos nada a ninguém, o que é desculpa suficiente para Conde e para nós. A gente merece isso. A gente merece acreditar em amores com lindos homens e mulheres, mesmo que não passem de cinco minutos, como as outras gentes merecem (porque sim!) seus refúgios de preferência, já que a segunda-feira ou coisa que o valha sempre vem.

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Desiigner, “Panda” [Matéria deste imaculado blog] | Paulo Sérgio, “Não Creio em Mais Nada” | Tim Maia | ABBA | Bonnie Tyler, “Total Eclipse of the Heart” |

 

>FICHA TÉCNICA:

Versão original: “Ilyne”, de Gordon Henderson e Julie Mourillon, da banda Exile One.

“Cheli”: Versão do Conde para “Ilyne”, da Exile One.
Music Publisher: R. D.

Estúdios Somax (Recife/PE, Brasil).