Comadre Florzinha, Comadre Florzinha [BRA, 1999].

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Atenção: abaixo segue três textos diferentes escritos cada um por um autor diferente.

 

Comadre Florzinha (1999) – Jornada a um novo mundo (a partir da minha cama).
Aroldo SóSucesso!

Falar sobre esse álbum passa obrigatoriamente por falar da minha ignorância. Minha falta de intimidade com os instrumentos musicais usados aqui, e esse é apenas um dos muitos exemplos possíveis de como meu casulo enrijeceu, já era um efeito de algo que me perturbava um pouco quando ouvi Mestre Ambrósio há algumas semanas. Como amo metáforas quase tanto quanto coisas bobas como lógica e honestidade intelectual, dá até vontade de ser Pollyanna e dizer que finalmente estou me metamorfoseando, só que não é bem assim. Nessa narrativa fofa, minha ignorância seria meu trunfo e eu teria ouvido Comadre Florzinha (mais tarde Comadre Fulozinha) de um modo puro, sem os preconceitos trazidos pelo excesso de familiaridade. Nos debates entre nós da SóSucesso!, temos chegado à conclusão de que toda música é passível de ser absorvida, entendida mesmo, imediatamente, pela sensibilidade inerentemente humana, e que há elos entre lugares geograficamente distantes, senão históricos, ao menos formados pela propriedade natural da música de objetivamente gerar padrões que se repetem em todos os cantos ou de causar sensações, por mais idiossincráticas, que se ligam umas às outras.

Minha história com esse álbum não é tão simples, infelizmente. Como ilustração dos meus problemas, trago outro debate do grupo, em que se aventou que eu seria o mais fechado ao diferente, o mais dentro de uma bolha, e que talvez eu tivesse até orgulho disso, e eu confessei que sim. Orgulho, no bojo, de ser limitado. Então esse casulo talvez não seja uma prisão temporária cuja dureza das paredes seja prenúncio de que irão desabar, mas mais uma cela em que se prende a si mesmo de bom grado, porque um dia, e ainda hoje, ela se mostrou confortável. Mas nem tão pessimista assim, também. Essa cela reverbera, e eu admito que uma cela que reverbere não serve pra metáfora, mas o fato é que ela reverbera e sente reverberações de fora. Verdade que continuo sem distinguir bem os instrumentos percussivos nem consigo enquadrar o som em esquemas teóricos ou ligá-lo a contextos artísticos e sociopolíticos amplos, mas o efeito sobre mim é real. Que esse efeito não seja forte cheguei a supor que se devesse a preconceitos, mas talvez nem tanto assim ou nem mesmo de modo algum, porque cheguei a uma espécie de compreensão a partir da qual as músicas começaram a ganhar personalidades distintas e me deixei envolver estética e conceitualmente, mesmo que não tenha aderido como se adere a uma paixão. Fechar-se em uma cela, mesmo com respiradouro, pode gerar uma distância entre a minha e a sensibilidade do mundo, marcar um limite, permitir a fruição mas roubar a chance da entrega. O que não quer dizer que se seja incapaz de reconhecer méritos, que aqui não são poucos.

Mas antes de falar de méritos, é importante frisar que só pude entrar nesse mundo sob certas condições. Andando em avenidas, cercado de alarido urbano, o som da Comadre Florzinha não conseguia respirar em meus fones de ouvido.

O som da Comadre Florzinha é cheio de detalhes, não há vazios no meio da percussão incessante, mas não há também histrionismo, não há o gosto pelo ultraje, a ânsia narcisista de gerar mais e maiores sons da música pop que conheço, e isso é especialmente verdadeiro em relação ao rock. É um som cheio, mas contemplativo, feito de texturas e a beleza da textura não é o detalhe, mas se dá na percepção da harmonia do todo. Deitado em silêncio, finalmente som e meu corpo se fizeram entender. O universo da Comadre Florzinha é um fluxo imagético em que as integrantes raramente tomam a frente e, quando o fazem, é mais para criar variedade na textura, trazendo novos elementos que vão sendo adicionados à paisagem sonora muito mais que, como é típico no som que costumo ouvir, ejetar arroubos nos ouvidos do público. E, a despeito do que essa descrição possa dar a entender, cada música tem uma cara bem própria, com destaque para “Maré” e “Grande Poder”, apesar de que todas as músicas mantenham a qualidade e as composições de membros da banda sejam do mesmo nível das mestras e mestres responsáveis pela composição da primeira metade do álbum. Por diferente que possa ser minha interpretação estética da realidade das relações entre as integrantes do grupo, esse álbum pode ser descrito como, em essência, uma narrativa coletiva. Nesse sentido, cedendo às indulgências de meus clichês pessoais, na minha obviedade, o que conheço que mais se parece com isso são as Raincoats, grupo inglês que começou no fim dos anos 1970. Não creio ser possível escapar de falar da questão de gênero aqui, mas também não sinto necessidade, do modo como senti e como tenho preferido falar desse álbum, de enveredar pelo assumidamente político. O que acontece é que o universo abordado pelas letras é muitas vezes feminino e essas são vozes, e consequentemente presenças físicas, femininas. Há também óbvias diferenças entre o modus operandi da Comadre Florzinha e o da maioria dos grupos associados ao manguebit, feitos de homens. Por fim, eu sinto que a dinâmica musical, apesar dos gêneros musicais distintos, entre as Raincoats e a Comadre Florzinha, passando ao largo de estereótipos sobre o feminino, é muito próxima, com ênfase na contribuição coletiva e no pathos em platô, trabalhado como narrativa, negando a necessidade da explosão individual para afirmar a subjetividade. Comadre Florzinha não me dilacera e me emociona como as Raincoats, mas daí a melhor explicação talvez seja mesmo a mais óbvia: minhas idiossincrasias e as vicissitudes da vida me tornaram refratário a todo um mundo de beleza, mas este texto é testemunho de que isso não é o fim do mundo, desde que se esteja disposto a admitir o erro e mudar.

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Mestre Ambrósio [Matéria deste honorável blog] | Pollyanna [Wikipédia] | Raincoats |

 

Comadre Florzinha e a horizontalidade da tradição.
George SóSucesso Yeah!

Chegamos ao fim deste #Especial com a obra que foi pra mim a mais difícil de analisar: o primeiro e homônimo disco da Comadre Florzinha. Lançado em 1999, o disco é um entrelaçado de ritmos como coco, toada de reisado, baião, polca e xaxado, embalados pela tradição de mestres e mestras, cantadores e cantadoras populares. Centrada principalmente na voz e na percussão, o disco é composto por releituras de músicas tradicionais, músicas de outros artistas e composições autorais.

Formada por Alessandra Leão, Karina Buhr, Isaar França, Renata Mattar, Telma César e Maria Helena Sampaio, a Comadre Florzinha representou na virada do século passado uma mudança importante no paradigma da cena local, não apenas por ser uma banda composta integralmente por mulheres em sua primeira formação, coisa rara nos anos 90, mas ainda, por um detalhe específico: a ausência de uma vocalista principal e a horizontalidade de suas performances, sem hierarquizações virtuosísticas e os delírios egocêntricos da cultura pop.

Praticamente todas as bandas do manguebit foram centradas em figuras de proa, geralmente masculinas, seja o MC Chico Science, o vocal punkbossa de 04 ou mesmo o trovador Siba. A excessão à regra foi Stela Campos e seu Lara Hanouska. Já a Comadre Florzinha foi a única banda do manguebit a se libertar da fórmula sagrada de band leader, a qual entroniza o popstar em detrimento da música como produção coletiva. Um fenômeno raro inclusive na música brasileira acostumada ao império do intérprete e às idiossincrasias de seus compositores. Essa característica era compartilhada com outra banda da época que se situava no espectro de crítica ao mangue: o Pajé Limpeza, banda experimental ligada ao coletivo artístico Molusco Lama.

Aqui é necessário entender que apesar de sua relevância e de ser vendido para a grande mídia como algo inovador, o manguebit não foi recebido na cidade de forma acrítica como uma panacéia revolucionário-estética que iria nos livrar do tédio mortal, amém. Recife, mesmo que periférica, é uma cidade portuária e cosmopolita, um lugar de circulação de ideias e pessoas. Na realidade, a operação realizada pelo mangue não era uma novidade em si, pois a psicodelia pernambucana já havia empreendido essa mistura de ritmos como rock, prog e música regional nos anos 70 para além do provincianismo armorial. Se pegarmos o Satwa de Lula Côrtes e Lailson ou o Paêbirú de Zé Ramalho e Lula Côrtes, a coisa vai até mais longe na sua universalidade, pois além dos elementos regionais encontramos elementos de música árabe, hindu e flamenca. Fruto da genialidade de Lula Côrtes, um dos artistas mais subestimados da música pernambucana.

A pretensão à novidade por parte do movimento mangue, esbarrava em certa medida na existência de uma cena underground que insistia em movimentar a cidade à parte dos pressupostos teórico-estéticos do movimento. Punk rock / hardcore, afoxé, samba e hip-hop faziam parte de cenas como as de Peixinhos e do Alto Zé do Pinho que movimentavam uma espécie de proto-economia criativa. Estas cenas não existiram a partir do mangue, mas ao mesmo tempo deste. Um dos grandes trunfos do manguebit foi a democratização de certos conhecimentos para um público pré-internet e carente de informações e sua contribuição para a formação de uma cadeia produtiva na cidade com estúdios, rádios e festivais. O novo no mangue foi o reforço da interface entre mercado e cultura, que antes já havia sido esboçada pela Rozenblit.

Mas a grande dificuldade ao analisar o disco da Comadre Florzinha foi meu completo desconhecimento sobre o som e musicalidade produzidos pela banda. Pelo fato bizarro da cultura popular estar fora de meus interesses no momento do surgimento da banda, o disco acabou por ser uma incógnita pra mim. Porém, ignorância se corrige com conhecimento, e ao me debruçar sobre ele, apesar de certa perda de fidelidade ao se transpor a energia vital da música popular para o ambiente de estúdio, vejo que é um disco que possui um caráter de pesquisa estética tanto nas composições autorais quanto nas releituras de mestres e mestras de reisado, um mundo inacessível para não-iniciados, tornando o som da banda indefinível. Como disse Karina Burh em uma entrevista: “Se for pra resumir o que fazemos, é preciso um tratado sobre a música regional brasileira. Em resumo, usamos instrumentos regionais e ritmos regionais brasileiros e o transformamos na nossa música”. E é assim em “Angicos”, música de Chico Science e Lúcio Maia, que junto com “Grande Poder”, do Mestre Verdelinho, curiosamente se posicionam em espectros opostos (uma banda do pop nacional e um mestre de reisado), mas que acabam por se tocar, nesse fenômeno de retroalimentação a que certo gênio chamou de “antropofagia”. Em conjunto com a releitura de “Xique-Xique”, de Tom Zé, e “Tamarineira”, de Elino Julião, confirmam o caráter de pesquisa quase mariodeandradiana do disco. Nas composições autorais, destacam-se o “Trem”, “Sapopemba” e “Poica” com suas melodias mouriscas.

Após esse disco, a Comadre Florzinha passaria por diversas mudanças de nome e formação até o seu não-fim oficial. Hoje, três das suas compositoras possuem carreiras próprias de maior visibilidade midiática: Isaar com, dentre outros, o seu disco “Azul Claro”, Karina Buhr que além de carreira solo, desbravou outros territórios como a literatura e as artes plásticas, e Alessandra Leão, que acumula entre outras coisas em sua carreira solo uma indicação ao Grammy Latino na categoria “música de raízes”. Todas as três trajetórias representam um desafio frente a uma indústria ainda dominada pelo machismo e misoginia e comprovam que o legado do manguebit reside não em seus cacoetes estéticos particulares, mas no comprometimento ético de parte de seus artistas com a coletividade da tradição e da cultura popular da qual surgiram.

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Chico Science & Nação Zumbi [Matéria deste magnânimo blog] | Mundo Livre S/A [Matéria deste incrível blog] | Mestre Ambrósio [Matéria deste ilibado blog] | Lara Hanouska | “Gnomos da Metrópole & Molusco Lama – Calourada de História UFPE” [YouTube] | Molusco Lama [Matéria no Jornal do Commercio] | Satwa, de Lula Côrtes e Lailson | Paêbirú, de Zé Ramalho e Lula Côrtes | “Tecidos Digitais – Nascedouro de Peixinhos – CTCD” [YouTube] | “Meu Bairro é o Maior – Alto José do Pinho” [Vídeo-arquivo da TV Viva, de PE, colocado no YouTube] | Fábrica de Discos Rozenblit [Wikipédia] | Karina Burh em entrevista no bate-papo da UOL | Isaar | Karina Buhr | Karina Buhr na literatura e nas artes plásticas | Alessandra Leão | Alessandra Leão indicada ao Grammy Latino por “Macumbas e Catimbós” |

 

Um Nordeste para além do puxadinho [Gilberto] Freyreano.
Mateus SóSucesso!

Comadre Florzinha é uma banda que escuto pouco, não tenho hábito. Mas isso não importa. Crítica não é isso. Comadre Florzinha foi uma banda criativa e inquieta.

Na real, parte disto que confesso se deve a falhas minhas mesmo, de formação do gosto, o que tende a gerar embolhamento, que tento furar, limite que todos e todas temos. Fui formado e deformado na música pop (rock, eletrônica dançante, rap etc), e de todas as bandas do manguebit, a Comadre Florzinha – depois “Fulozinha”; inclusive prefiro citá-las assim, feito a gente fala aqui – é a menos pautada pelo que foi gerado pela industrialização desenfreada e inchaço urbano de megalópoles.

De alegria feita de sol, Comadre Fulozinha trabalhava, assim como a Mestre Ambrósio, com a música popular do Nordeste, em especial o coco, gênero musical de prosódia quebrada em que muitas vezes o pandeiro dá o tom de tudo. Só que tem aquela hora onde o arrasta-pé de palhoção de São João domina o disco – melhores momentos pra mim. Várias faixas parecem feitas pra dançar junto, como num forró. Porém, mais que Mestre Ambrósio, Comadre Fulozinha me parece bem mais fidedigna em relação às referência que toma pra si. O conjunto não parece exatamente uma “tradução”, mas algo mais literal. E há em tudo uma paixão visível em relação à música que – até digo – reverencia. Ao meu ver, Comadre Fulozinha é a banda que mais leva ao pé da letra a ideia de que a música de matriz popular e tradicional é um fim em si, uma cultura que se basta.

Comadre Florzinha, o disco, é totalmente pautado na percussão, o ritmo é praticamente tudo nele. Uma quantidade grande de músicas são versões, 5 delas – as primeiras – sendo cocos e toada de origem alagoana. Em outras, quando a puxada é de forró, não é um forró exatamente rasgado, mas tá lá embolado na força do coco. Só que mesmo com tudo isso, mesmo sendo tudo muito rítmico e vigoroso, esse é um álbum que tem um lirismo bem bem forte ao mesmo tempo. Seria esse vigor com essa candura uma contradição em um gradiente de emoções? O que sei é que, ao ouvir, dá aquela vontade de dar um abraço – o que complica, né?, nesses tempos de coronga.

Olha, falo tudo isso, mas admito que não tenho armas pra fazer comparações que sejam um tiquinho só coerentes com esse álbum. Sim, sou de Pernambuco, mas se engana aquele que não é daqui se acaso ache que Recife é tipo um personagem com pandeiro entoando “poesia de repente”. É evidente, existe isso também. Só que Recife é uma cidade grande do Nordeste brasileiro, uma metrópole centenária ainda do período colonial, uma das mais antigas talvez da América Latina. São muitos sedimentos de cultura na mesma pisada da confluência dos grandes centros urbanos do mundo via o porto da cidade. Daí, como diria um amigo, quem vive numa metrópole meio que é um desgarrado, um “apátrida” – ou ao menos tende. Sou meio que isso mesmo, um “apátrida”. Discutir o manguebit nesse #Especial e fazer parte dessa cidade me empurram a colocar de lado a viseira e falar daquilo que de algum modo me é próximo. Afinal, cultura popular não é apenas rap e punk rock, né?

Pro meu ouvido colonizado pela música pop, fazendo comparações extremamente esdrúxulas, o disco tem, pra mim, algo do clima de uma Cat Power unida a um Violent Femmes. Não sei bem o porquê, mas eram as bandas que mais me saltavam enquanto escutava. Tentando traduzir, e seguindo esse paralelo nonsense, tanto Comadre Fulozinha quanto essas duas têm uma boniteza palpável, a banda sendo um misto da sanha gentil de quando a Cat Power tá foguete (só penso aqui em “Free”) + aquele clima de festa da Violent Femmes. Sempre que escutei Violent Femmes pensei no quanto a música do conjunto tinha a ver com a cultura popular estadunidense (sua terra), só que exacerbadamente pop e até feita pra tocar no rádio – qual é essa música popular donde parte o grupo, é algo pra que eu investigue ainda, mais na frente. Por sinal, Comadre Fulozinha – assim como o manguebit – só não tocou ou mesmo agora não toca maciçamente no rádio devido à monocultura autoritária do jabá, propina paga às rádios no Brasil, algo ainda hoje presente.

Para mais, é inevitável falar da dificuldade de conseguir informações sobre a banda na internet. O manguebit era um “Clube do Bolinha” do caramba, e a Comadre Fulozinha era uma banda composta integralmente por mulheres. Seria coincidência ser a menos comentada de todas? Acredito que não. Ademais, em Pernambuco – e no Brasil –, ao contrário do que os de fora do estado creem, rola uma espécie de diminuição daquilo que vem do povo, ainda colocado culturalmente numa chave folclorizante quando a produção é de raiz ancestral, mesmo que pra fora diga-se o contrário. A concentração em diversos aspectos é grande, da grana mas também política e simbólica. Assim como o povo negro e indígena, numa cultura centenariamente patriarcal, as mulheres seguem não tendo a devida projeção. Que o diga, historicamente, “Casa-Grande & Senzala”, do pernambucano Gilberto Freyre, livro que fala do Brasil a partir do Nordeste, cujo subtítulo diz tudo: “Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal”.

Aqui, pra mim, grita curiosamente o fato de que, de todas as bandas resenhadas nesse #Especial, Comadre Fulozinha é a que não possui uma letra sequer, umazinha, que reforce opressões a grupos já oprimidos, mesmo quando faz versões de composições alheias, o que poderia ser usado eventualmente como subterfúgio e cortina de fumaça pra erros e equívocos. Ao meu ver, é nítido o fato de que, no caso da banda, isso definitivamente não seja coincidência. No caso da banda, parece-me deliberado.

Ou seja, falar de Comadre Fulozinha é encontrar talvez uma trilha e saída crítica pra parte daquilo que ainda vivemos. Que esse futuro role agora.

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Mestre Ambrósio [Matéria deste notável blog] | Violent Femmes, “Add It Up” | Cat Power, “Free” | Violent Femmes, “Promise” | O jabá, ainda hoje presente | Clube do Bolinha [Wikipédia] | “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre [Fichamento pra facul] |

 

>FICHA TÉCNICA:

Comadre Florzinha era:
Alessandra Leão: Voz e Percussão
Isaar de França: Voz e Percussão.
Karina Buhr: Voz e Percussão.
Maria Helena Sampaio: Voz e Percussão.
Renata Mattar: Voz, Percussão, Sanfona e Sax.
Telma César: Voz e Percussão.

“Maré”, “Araúna”, “Roseira Di”, “Pirulito” e “Ô Papai” são, segundo o disco, faixas de “Domínio Público”; “Grande Poder”, música de Mestre Verdelinho; “Angicos”, música de Chico Science e Lúcio Maia; “Mais De Oito”, música de Renata Mattar, Telma César e Comadre Fulozinha; “Satuba”, música de Isaar; “Poica” e “Sapopemba”, músicas de Renata Mattar; “O Trem”, música de Karina Buhr, e “Cobra Verde”, música de “Domínio Público”; “Fulozinha”, música de Telma César; “Xiquexique”, música de Tom Zé e Zé Miguel Wisnik; “Tamarineira”, música de Elino Julião.

Gravadora: CPC-UMES.

Mundo Livre S/A, Samba Esquema Noise [BRA, 1994].

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Atenção: abaixo segue três textos diferentes escritos cada um por um autor diferente.

 

O futuro é uma câmara de gás hélio.
George SóSucesso Yeah!

Por mais que seja difícil de acreditar, houve um tempo em que a música no Brasil conseguiu libertar-se da hegemonia do circuito de produção do eixo Rio-São Paulo. E por mais paradoxal que possa parecer, essa quebra de monopólio veio justamente de um selo financiado pela Warner e das mãos da maior banda paulista de todos os tempos – os Titãs – e do produtor e futura celebridade Carlos Eduardo Miranda: o selo Banguela Records. Essa abertura deu oportunidade a bandas tão díspares como Graforréia Xirlamônica, Raimundos e Mundo Livre S/A de saírem de seus nichos regionais (Porto Alegre, Brasília e Recife) e alçarem o voo cego em busca de sucesso no mercado nacional. Dessas, a única banda a atingir o estrelato foi o Raimundos. As outras duas apesar do sucesso de crítica, amargaram baixas vendagens e um tímido sucesso comercial. No caso do Graforréia, essa ambição acabou por implodir a possibilidade de uma carreira brilhante. Já o Raimundos, hoje, é apenas uma vaga lembrança para a nova geração. De todas, a única a envelhecer com dignidade foi a Mundo Livre. O leitor inteligente pode argumentar facilmente identificando como principal razão o fato dessas bandas e seus respectivos discos terem ficado datados tanto no aspecto sonoro como em suas letras as quais reproduziam muitas vezes preconceitos e vícios de época. Por outro lado, os discos funcionam como instantâneos das dificuldades encontradas nos anos 90 pelas bandas alternativas de se sobressaírem em um cenário estagnado pela ditadura do jabá e o punho de ferro das majors. Talvez algumas dessas bandas quisessem mesmo ser grandes, algumas chegaram até perto de ser, mas para outras o que restou de fato foi ganhar o prêmio de consolação do fracasso comercial: o respeito da crítica e o status de cult.

E esse é justamente o caso da Mundo Livre S/A e seu disco de estréia Samba Esquema Noise. Apesar de ter tido sucesso relativo quando de seu lançamento, o disco acabou por agradar mais à crítica do que o público. Quase três décadas depois, a Mundo Livre continua sendo uma banda para críticos, porém, agora, com uma considerável legião de fãs amealhados durante suas quatro décadas de existência, alcançando esse entreposto comercial da musica pop brasileira ocupado por discos de artistas tão variados quanto Gal Costa (Fa-tal), Walter Franco (Revolver) e Pedro Santos (Krishnanda).

Na sua estreia no cenário nacional, o manguebit e seus criadores lançaram mão de todos os aparatos tecnológicos para justificar-se como movimento (manifestos, programa de rádio, entrevistas coletivas de lançamento, videoclipes) para não deixar escapar a oportunidade de furar a bolha do eixo Rio-São Paulo e alcançar o grande público. Porém, enquanto a Nação Zumbi optou por fazer uma jogada mais arriscada ao assinar com a Sony ganhando a produção de Liminha e o estúdio Nas Nuvens como bônus, a Mundo Livre optou por um caminho mais low-profile, ao fechar não com uma major, mas com uma subsidiária administrada por músicos (Charles Gavin do Titãs) e por Miranda, com um cast mais alternativo (Little Quail, Linguachula, Maskavo Roots). O que contribuiu para aura de banda não-comercial e com o legado de longa duração, bem mais consistente do que o de seus outros companheiros de casa.

Desde que Samba Esquema Noise foi lançado em 1994 com sua estrutura rítmica baseada em groove, praia, tamborim, cavaquinho e ostras que ficou evidente a influência da fase clássica de Jorge Ben. A começar pelo título em homenagem ao primeiro long play de Jorge Ben, Samba Esquema Novo, ao imaginário malandragem/fuleiragem/maresia, esse é um disco que deixa premente a sua missão de resgatar o samba-soul para os ouvidos galvanizados dos rockers e radicais do anonimato que esse gênero se encontrava no início dos anos 90. E nesse sentido, sua missão parece ter tido completo êxito. O novo trabalho de 04, Bactéria, Otto, Chefe Tony e Goró despertou em diversos moleques metidos à punks a curiosidade e a necessidade de entender a música brasileira para além do rockBR. Uma busca por algo muito mais denso e entranhado em nossa alma do que jamais o termo underground poderia sugerir. Graças a esse disco, não apenas Jorge Ben, mas artistas como Di Melo, Marku Ribas, Marcos Valle, começaram a ser reconhecidos por uma geração que havia sido isolada dessas obras devido ao jabá radiofônico nacional.

Samba Esquema Noise é a grande herança de Miranda e da titânica Banguela para um futuro que cada dia mais parece com uma câmara de gás, como canta 04 em “Homero, o Junkie”, só que cheia de hélio. Considerado um dos melhores discos dos anos 90, suas 660 horas de gravação traduzem o espírito de uma banda que após dez anos de espera sabia que estava diante de seu ponto de não retorno. Gravado no Be Bop, estúdio só não mais clássico do que o Nas Nuvens, o disco segue o caminho do pop radiofônico praieiro, misturando surf music e um gingado bubblegum ao samba-soul. Repleto de participações de estúdio como as de Naná Vasconcelos, Syang, Nasi do Ira! e muitos outros, o destaque do disco é dado pela guitarra/cavaquinho de 04, um feliz encontro entre D. Boon, do Minutemen, e Aborto do Cavaco. 04 consegue formar um bloco uníssono de timbres que em conjunto com os onipresentes grooves constroem a identidade rítmica única do álbum.

Mundo Livre, ao contrário da Graforréia, sobreviveu para superar o mero culto, não se transformando apenas em um bibelô da turma de 94. Suas intenções estéticas podem não ter se sobressaído ao público de seu tempo, mas o seu sucesso de crítica deu visibilidade no longo prazo ao projeto político-musical da banda que mesmo tendo sofrido com as intempéries de tantos anos de estrada (saída de músicos, troca de gravadora, mudanças do mercado fonográfico), continua firme em sua independência e prova que às vezes por mais que sejam uns bichos chatos pra c…, de vez em quando os críticos e jornalistas musicais acertam.

Mas só às vezes….

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Titãs | Graforréia Xirlamônica | Gal Costa, “Dê Um Rolê (Ao Vivo)” | Walter Franco, “Feito Gente” | Pedro Santos, “Quem Sou Eu” | Chico Science & Nação Zumbi [Matéria deste inopinado blog] | Little Quail | Linguachula | Maskavo Roots | Jorge Ben | Di Melo | Marku Ribas | Marcos Valle | Naná Vasconcelos | P.U.S., “Luxury” | Ira! | Minutemen | Aborto do Cavaco |

 

Mundo Livre S/A, quando o Noise inova o Novo.
Mateus SóSucesso!

De todas as bandas do manguebit, Mundo Livre S/A é a que mais ouço.

Há um motivo pra isso, acho. De todas, é a mais rock, base sonora que me abriu pro som. Falava-se muito da influência de Jorge Ben na Mundo Livre, e da música brasileira num geral, e eu, novinho, não conseguia ver. Achava o som comum, normal, nada demais. Mas também, pudera: era a época na qual eu achava Sex Pistols levinho, e só escutava de grind pra lá.

Anos se passaram, e com o advento do CD as rádios foram se desfazendo de seus acervos, e agarrando a deixa, eu ia traseirando ônibus pra comprá-los no precinho. Nessa, fui aos poucos catando os álbuns de Jorge Ben. O primeiro que catei foi o primeirão, o Samba Esquema Novo. Daí, na primeira escutada me perguntava: “O que que tem nesse som? Isso pra mim é bossa-nova, vey…” [cara de muxoxo].

E era mesmo. O estilo de João [Gilberto] havia influenciado Jorge. Mas não era só isso. Aquele balanço era particular demais, nem era samba, nem era bossa, nem era… rock. Na real, até hoje não sei onde realmente o rock tá ali, culpa certamente de meus ouvidos estragados pelo próprio rock. De qualquer modo, era inconfundível, e quanto mais discos eu tinha dele, mais impressionado eu ia ficando. Escutei e reescutei centenas de vezes o Samba Esquema Novo, assim como o primeiro do Secos & Molhados, o Transa de Caetano etc, discos que não me desceram logo de cara. Só que quando a ficha caiu, putz…

Pelo Twitter, Luiz Antonio Simas defende que o balanço de Jorge Ben é devedor de toque pra Oxóssi, ou seja, é um balanço influenciado pela religiosidade de matriz africana, algo que Ben tinha nítida consciência, tanto que em “Mas Que Nada” diz: “Este samba que é misto de maracatu / É samba de preto velho / Samba de preto, tu”. Como vários e vários daquele período que amavam João Gilberto, ele aumentou um ponto e foi além. Na real na real, Jorge Ben fez mais: Ben criou um mundo completamente próprio com seguidores até hoje, vide Emicida, Curumin… e Mundo Livre.

Pois é. Aquela falta de rock que eu sentia – isto é, de guitarra distorcida, ritmo total 4 por 4, vocal reto mas com pathos –, aparecia todo ali, na Mundo Livre. O rock do samba-rock de Jorge Ben, Mundo Livre expõe e intensifica. Uma fusão notória entre [The] Clash e Jorge, entre a agressividade de um e a ginga do outro, entre o tom de denúncia e a celebração do corpo e do sol, entre a alegria e a raiva.

Daí, um breve parênteses: não dá pra falar de Mundo Livre sem falar da letra, um dos ingredientes essenciais, herança do punk. Daí, chama logo atenção o tom crítico de muitas delas, de ironia e crítica da vida ordinária numa metrópole capitalista, algumas de forma cifrada, outras, aberta, tais como “Saldo de Aratu”, “Bola do Jogo”, a música-título (“Samba Esquema Noise”) etc. Essas até que envelheceram razoavelmente bem. Porém, outras…

Num artigo de título emblemático, “Leia, se for macho”, que retrata a imagem das mulheres na música pop da década de 1990 (mais especificamente no rock e no rap), Fred Di Giacomo lembra de uma canção da Mundo Livre no Guentando a Ôia cuja letra, em meio ao título sugestivo (“Tentando Entender as Mulheres”), afirma que “Todo homem deveria ter um carro / Ou senão nem precisava ter testículos etc”. Porém, aponto, a questão não estaria somente nesta letra ou somente neste disco. No Samba Esquema Noise, álbum desta resenha, quando a Mundo Livre não está negando os pressupostos de uma vida S/A, as letras fazem loas ao corpo e à sensualidade femininas como fonte e objeto reiterado do desejo masculino. Entretanto, como lembra Di Giacomo, na representação da cultura pop daquele período, “A regra era que mulheres ficavam famosas e eram admiradas por seu corpo e sensualidade e não por suas ideias e feitos”. Ou seja, isso que percebo não seria um caso isolado do Samba Esquema Noise ou da banda – o que não isenta ninguém, na real. Daí então isso me faz lembrar da confissão de Mano Brown num bate-papo sobre lugar de fala, dizendo que hoje rejeita tocar algumas composições mais antigas suas justamente pelo tom misógino. A realidade mudou bastante, e [nem tão] novos marcadores têm dado a tônica do debate público, vide um Roda Viva recente com Emicida em que a faixa “Trepadeira” é posta em xeque. Samba Esquema Noise é parte deste flow de época.

Para além, enquanto voltava a escutar o disco pra esta resenha, ia me dando uma vontade danada de ouvir de novo bandas da América Latina como La Maldita Vencidad, Gustavo Cerati (da Soda Estéreo) e Café Tacvba. Algo na Mundo Livre me provoca isso. Mas então surgiu “?”. Daí, meu palpite é que, mesmo misturando, a mistura da Mundo Livre não é ostensiva, assim como nas bandas e artistas que citei, que fazem música pop com elementos de seus próprios países, só que sem estarro, algumas mais outras menos sutis. Mundo Livre não é ostensivamente local, “de Recife”, de Pernambuco, não trabalha exatamente com as músicas tradicionais e muito particulares daqui. Talvez esteja aí o porquê da minha afirmação inicial, de que Mundo Livre soava pra mim “comum, normal, nada demais”. Seu som trabalha com o samba e com o samba de Jorge Ben, um samba depois do samba se tornar uma “tradição moderna” nacional, virar “uma dinastia”, conforme já disse Gil. Sua inovação talvez não seja gritante pra mim exatamente porque como todo brasileiro fui fortemente exposto ao samba como música de ninar, praticamente. E essa “dinastia” já passou por tantas reinvenções desde o tropicalismo, já foi tão feita e refeita e feita novamente, que pra mim Mundo Livre não parece uma novidade escancarada. Eu, frequentador de shows punks, berço e viveiro inicial da Mundo Livre.

Noves fora zero, Mundo Livre causou barulho tanto metafórico quanto ao pé da letra. Entortou Jorge Ben e processou pro momento presente. Trouxe pra ouvidos distorcidos. Ou seja, Mundo Livre fez do Novo, Noise [“Ruído”, traduzindo].

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Jorge Ben, “Chove Chuva” | Sex Pistols | Carcass, “Maggot Colony” | Jorge Ben, “Rosa, Menina Rosa” | João Gilberto | João Gilberto, influência de Jorge Ben [Jorge Ben Jor, Memória Roda Viva] | Jorge Ben, “Quero Esquecer Você” | Secos & Molhados | Caetano Veloso, “Nine out of Ten” | Luiz Antonio Simas [Twitter] | Jorge Ben, “Apareceu Aparecida” | Oxóssi (Agueré) | Jorge Ben, “Mas Que Nada”  | Emicida | Curumin | The Clash | Fred Di Giacomo, “Leia, se for macho” | Mundo Livre S/A, “Tentando Entender as Mulheres” | “Mano Brown e Francisco Bosco discutem lugar de fala e apropriação cultural” [YouTube] | Emicida sobre “Trepadeira” [Roda Viva]  | La Maldita Vencidad | Gustavo Cerati | Café Tacvba | “Filme desvenda músico anônimo” [Artigo da Folha de São Paulo sobre “O Homem que Engarrafava Nuvens”, de Lírio Ferreira] |

 

Mundo Livre S.A., Samba Esquema Noise (1994) – O manguebit que ama o samba que ama o rock que ama Seattle que não ama ninguém.
Aroldo SóSucesso!

Na música, a forma e o conteúdo são tão a mesma coisa que resumir uma crítica a dizer que uma peça musical ficou datada talvez seja ainda mais problemático que em outras artes. Porque geralmente se diz isso enquanto não se vê problema em amar Bach incondicionalmente. Então é óbvio que há modos e modos de envelhecer. Chico Science & Nação Zumbi, por exemplo, envelheceram pela superexposição, pelas associações simbólicas que a mudança dos tempos trouxe e, assim, eles ainda podem surpreender. Mais ou menos isso acontece também com Mestre Ambrósio, cujo som é tão calcado em especificidades culturais ainda muito territorializadas e autônomas que pode se expandir e chegar próximo ao universal. Comparado a esses dois, o que a Mundo Livre S.A. faz aqui soa muito preso às correntes da época em que foi lançado. É um álbum considerado por uma pá de gente boa como inovador, com sua mistura de samba e rock e provavelmente mais alguma coisa, e acho que foi mesmo.

O problema é que, em retrospecto, o terreno desbravado por Samba Esquema Noise pertencia já a um latifúndio. O problema não é ser datado, portanto, que é uma constatação tautológica, o problema é como se envelhece. Ao ouvir Samba Esquema Noise, a década de 90 me aparece sem viço, como um Dorian Gray desmascarado. Para mim, que vivi a década como roqueirinho, a música que veio como um comboio assim que o Nirvana escancarou os portões do mercado era o máximo da novidade. E era, na verdade, porque mudar para permanecer o mesmo não é só uma máxima para usar em “crítica social foda” ®. Os principais culpados por essa ilusão novidadeira não foram o Nirvana, claro, mas os Davids Geffen da vida, as grandes gravadoras e todo mundo que embarcou na onda sem pensar duas vezes.

A música da Mundo Livre S.A., ao menos aqui, por mais que seja entendida como fenômeno à parte, ainda parece fazer parte dessa engrenagem importada quando me lembra em iguais partes Jorge Ben e certos cacoetes guitarrísticos que invadiam o Brasil vindos do norte das Américas. Se ao menos soasse como as duas coisas ao mesmo tempo, taí algo que eu louvaria. Do jeito que está, não é bem um experimento desconexo, mas também não é o que Victor Frankenstein tinha em mente. É um som bem-apessoado, por assim dizer, feito para agradar tanto quanto o primeiro LP dos Raimundos, ambos gravados pela Banguela Records, ambos criados a partir de uma mesma visão musical com fixação por técnicas de produção que se confundiam com a própria música de modo tão na cara que deveria ter sido óbvio desde o começo que, assim que o verniz descascasse pela ação do tempo, a percepção do conteúdo mudaria drasticamente. Se eu ainda não deixei claro, tô querendo dizer que, pra mim, Samba Esquema Noise ficou preso na década de 90.

Muitos dos associados diretos começaram essa fase já sob o signo da decrepitude, como os Titãs, cujo Titanomaquia tentava emular o peso do grunge de Seattle, esquecendo que já faziam um tipo de peso, de visceralidade, muito deles, e virando pastiches de si mesmos. Mesmo eu adolescente percebi que tinha algo errado em Titanomaquia.

O que chegava aqui como a nova onda era pautado por guitarras agressivas. Ao mesmo tempo, certa riqueza pop baseada em mesclagens e reinvenções de gêneros, mesmo que ainda nascendo dos polos mais óbvios, só despontaria para meus ouvidos com atraso, abafada no Brasil pelas cenas alimentadas pelo Nirvana. Britânicos (mas um monte de americanos também) como My Bloody Valentine e A. R. Kane já despontavam no mercado ou na mídia usando a guitarra de modo menos fálico e havia quem, como Saint Etienne, até hoje seja vista como nota de rodapé, ainda que tenha misturado house e pop barroco de modo muito particular. Mas o ponto é que esses artistas não eram mais que extensão natural dos cerca de 15 anos anteriores de produção criativa que as grandes gravadoras desprezaram até então. O que acabou resultando na ideia idiota mas comum que se tinha no começo dos 1990 de que a década anterior era basicamente cafona e descartável.

Mas voltando: no Brasil dos anos 90, tudo parecia muito divertido e promissor. Forró e hardcore (Raimundos, 1994)? Por que não? Melhor ainda se não houver nem um nem outro, porque senão vai vender como? Quanto a Samba Esquema Noise, a gente vê que é muito bem produzido, com passagens marcadas por autêntica criatividade instrumental e duas, três músicas com pulso suficiente para não morrerem na memória, mas com melodias pouco marcantes para um álbum fundamentalmente pop, o que talvez explique em parte a pouca vendagem.

Mas há um problema mais sério: Samba Esquema Noise ficou em 1994 mais pelas letras que pela música. Fred 04 incorpora o malandro galanteador sem jamais levar em conta a subjetividade feminina e a mulher acaba parecendo mais um objeto de fetiche. A deusa de Samba Esquema Noise, o que é inclusive reforçado pelo videoclipe, não é a deusa que se cultua, mas a mulher a que se chama de “deusa” ou “princesa” pra ver se, vai lá, rola alguma coisa mais tarde. Usar eufemismos (o grande W de Wania) e ironia e justificar-se por licença poética tornam esse sexismo ainda mais irritante, porque é insidioso. A crítica social em versos líricos continua presente em quase todas as letras, mas mesclada ou, no mínimo, colada a um pensamento sexista cujo retrocesso, inclusive político, salta mais e mais aos olhos nos dias presentes. Esse, pra mim, na verdade, é que é o grande problema.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Johann Sebastian Bach | Chico Science & Nação Zumbi [Matéria deste venerando blog] | Mestre Ambrósio [Matéria deste blog, a seu dispor] | “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde [Wikipédia] | Nirvana | Geffen Records [Wikipédia] | Jorge Ben | Frankenstein [Wikipédia] | Titãs | My Bloody Valentine | A. R. Kane | Saint Etienne |

 

>FICHA TÉCNICA

Mundo Livre S/A foi:
Fred 04: Guitarra, Cavaquinho e Voz.
Fábio Goró: Baixo.
Bactéria: Teclados
Chefe Tony: Bateria
Otto: Percussão.

Todas as faixas escritas e compostas por Fred 04, exceto “Livre Iniciativa”, música de Tony Montenegro e Fred 04 e letra de Fred 04, “Saldo de Aratú”, música de Mundo Livre S/A e letra de Fred 04, “Uma Mulher com W… Maiúsculo”, música de Mundo Livre S/A e letra de Fred 04, “Homero, o Junkie”, música de Fred 04, Fábio Montenegro e Tony Montenegro e letra de Fred 04 (inspirado no livro “2544 Cela da Morte” de Caryl Chessman), “Terra Escura”, música de Fred 04 e letra extraída de “O Eu Dividido” de R. D. Laing, e “O Rapaz do B… Preto”, música de Mundo Livre S/A e letra de Fred 04.

Gravadora: Banguela Records.
Distribuição: Warner.

Produção: Carlos Eduardo Miranda.
Gravação e mixagem: Beto Machado / Bob Mac (Estúdio Be Bop / São Paulo).

Participação em “Homero, o Junkie”: Nasi (vocalista do Ira!).
Participação em “Musa da Ilha Grande”: Mallu Mader (atriz).
Participação em “Sob o Calçamento (Se Espumar é Gente)”: Paulo Miklos, Nando Reis e Charles Gavin (Titãs), além de Gilmar Bola 8, Toca, Gira, Canhoto e Dengue (Nação Zumbi) e o produtor Apolo 9.
Guitarra em “Livre Iniciativa”: Syang (P.U.S.).
Percussão em “Rios (Smart Drugs), Pontes e Overdrives”: Naná Vasconcelos.

Mestre Ambrósio, Mestre Ambrósio [BRA, 1995].

[Pra ouvir, clique aqui.]

 

Atenção: abaixo segue três textos diferentes escritos cada um por um autor diferente.

 

Mestre Ambrósio, a rabeca como guitarra e a música como horizonte.
Mateus SóSucesso!

Mestre Ambrósio foi um dos primeiros conjuntos quando da explosão do manguebit. O manguebit tinha diferenças com o armorial, ora mais acirradas ora menos, um movimento, o armorial, que tinha Ariano Suassuna como testa e linha de frente. Daí, é no mínimo curioso perceber associações entre Mestre Ambrósio e aquele outro movimento de Pernambuco. Fiquei me perguntando o porquê, donde vinha essa impressão em mim, e entendi que certamente vinha da rabeca, instrumento de arco precursor do violino largamente usado por exemplo no Quinteto Armorial, só que no Mestre Ambrósio ela toma outro sentido.

No Mestre Ambrósio a rabeca cumpre a função de guitarra.

O rock tem dívida com o blues. O blues é oriundo da cultura negra e popular estadunidense. Inicialmente mais rural, vindo do Mississipi, se urbanizou ao chegar em Chicago. O que antes era acústico e no violão, passou a ser guitarra – instrumento e substância do rock. Muddy Waters e outros personagens foram fundamentais nesse processo. Ouvir Muddy Waters é ouvir algo de um vigor incrível. O blues sempre foi denso e triste e por vezes até soturno, como em Robert Johnson, algo perceptível também em cantoras como Bessie Smith ou Mamie Smith, mulheres de vozes poderosas, que tomam conta do espaço, que causam furor. No caso de Bessie Smith, a voz rasga. A dor de Bessie Smith se misturava com uma raiva que, no fundo, sara. Em “Mannish Boy”, de Muddy Waters, o som pega fogo com um tema total standard e faz da guitarra berro – com gente berrando no fundo, inclusive. É tanto vigor que parece raiva.

O armorial vai em sentido inverso a tudo isso, aqui, em Pernambuco. No armorial parece que estão exigindo o tempo todo calma dos brincantes – fonte eleita e confessa –, parece que estão à toda hora mandando “que se ajeitem”, que se contenham, que “tenham modos”. O armorial faz uma música que ordena contemplação no que por excelência é corpo e movimento. O movimento, quando rola, precisa ser racionalizado, não pode ser como comparece, como veio, precisa ser esquadrinhado, seccionado, metrificado. Não levanta a poeira. Não é a energia primordial de Mané Pitunga na rabeca (aqui te agradeço, Igor, pelas indicações). Não é Chico Antônio cantando coco como queria, como num mantra que parece não ter hora pra acabar. Não é Seu Luiz Paixão endiabrado, dando alma ao salão.

Fui um bocó em outro texto: na minha resenha do Ancient Methods dava a entender que música é uma “arte augusta”, elevação estética última, algo que estaria praticamente planando em voo etéreo, o contrário de uma “arte mensurável e utilitária” como seria o techno de pista, como o de Michael Wollenhaupt, compositor por trás do Ancient Methods. Na realidade, essa contraposição entre funcionalidade e contemplação é europeia demais, vejo agora. Da mesma natureza que a separação entre corpo e alma. De modos que tudo isso, etnicamente, tem uma cor: é branca. Portanto, falei besteira. Vou tentando retificar aqui, nessa resenha, que me abriu pra outras questões.

Por mais que Mestre Ambrósio seja uma tradução da arte popular nordestina – que é hegemonicamente de matriz (e interpretação) africana e indígena –, uma tradução como foi antes o Quinteto Armorial, há uma força e uma energia e uma funcionalidade provocadas pelo som que não comparecem do mesmo jeito no Quinteto. Como nos Rolling Stones e sua tradução do blues, não dá pra escutar Mestre Ambrósio sem ser tomado por um ímpeto corporal, por uma força que parece não brotar da cabeça, mas dos pés, do chão, vontade de pular, de se agarrar, de ficar suado, viscoso, um fuá. Existe nisso tudo aí uma subjetividade, mas ela ultrapassa e muito a “subjetividade ocidental”, isto é, a subjetividade individual burguesa. Tudo só acontece aqui com outras pessoas. O corpo aqui é, antes, grupal e coletivo.

Mestre Ambrósio não pede pra parar, pra que se aquiete. Pelo contrário, forças buliçosas tomam conta do disco e do ambiente. De algum modo, as forças presentes em mestres da cultura popular ainda permanecem nessa tradução que se chegou nas grandes capitais do país com esse disco. Jovens adaptados com o que tocava no rádio abriram os ouvidos pro que acontecia dentro do Brasil, o que redundou tempos depois em registros de artistas da cultura popular, como Mestre Salustiano, Mestre Luiz Paixão, Seu Zé de Teté etc. Personagens fundamentais da nossa música, gente que não deve ser tida como nascente pra traduções, mas como um fim em si, como diz com razão Siba em vídeo mais ou menos recente.

No Mestre Ambrósio existe uma tentativa explícita de não hierarquizar, de não tornar superior aquilo que está na escala do povo e humana, como devem ser as coisas. Nem a tradução se coloca superior a de onde parte, nem há superioridade do “espírito” sobre o corpo, pois é na própria dança onde se desenvolve a compreensão. A fala é um elemento fundamental na constituição humana. Uma europeia uma vez me advertiu, ao sacar a realidade de Recife, que aqui “não falamos depois que pensamos”, mas que, antes, “pensamos enquanto falamos”. Tudo junto e misturado.

É nessa mistura onde nos situamos, é nela que se situa boa parte da cultura popular especialmente negra, maioria do povo. Para além, existe na música e na cultura popular uma dinâmica coletiva presente e constante, mesmo com a expressão individual de cada integrante. Algo que traz, desde já, um potencial de emancipação social enorme, como sugere o anarquista estadunidense e Pantera Negra, Ashanti Alston, ao falar do jazz:

“(…)a participação é um tema muito importante para o anarquismo e também é muito importante na comunidade negra. Considere o jazz: é um dos melhores exemplos de uma prática radical existente porque ele assume uma conexão participativa entre o individual e o coletivo e permite a expressão de quem você é, dentro de um ambiente coletivo, com base no gozo e no prazer da música em si. Nossas comunidades podem ser da mesma forma.”

E serão. Queiram ou não queiram os juízes.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Quinteto Armorial, “Rasga” | Robert Johnson | Bessie Smith, “St Louis Blues” [Curta-Metragem, 1929] | Mamie Smith | Bessie Smith, “Do Your Duty” | Muddy Waters, “Mannish Boy” | Mané Pitunga | “Chico Antônio, O Heroi com Carater” [Curta-Metragem, Eduardo Escorel, 1983] | Seu Luiz Paixão | “Diz que é pesadelo, mas teu mal é sono. Ancient Methods, um picolé de chuchu”, minha resenha, neste blog | Quinteto Armorial, “Do Romance ao Galope Nordestino” [Disco com texto original de Ariano, reproduzido no link] | Rolling Stones | Muddy Waters & The Rolling Stones, “Baby Please Don’t Go” (Ao vivo) | “Fuá” [Dicionário Informal] | Mestre Salustiano, “Sonho da Rabeca” [Disco] | Mestre Luiz Paixão, “Pimenta com Pitú” [Disco] | Seu Zé de Teté, “Poetas da Mata do Norte vol.4 – Coco de Roda” [Disco] | Siba, “Ocupação Antonio Nóbrega” [Vídeo, 2013] | Povo negro, maioria no Nordeste [Gráfico] | Ashanti Alston, “Anarquismo Negro” | Capiba, “Madeira Que Cupim Não Rói” |

 

Se Zé Limeira dançasse punk rock.
George SóSucesso Yeah!

Nossa história começa em uma noite de fevereiro de 2016, em um ônibus da 1002 com destino à Festa da Alvorada em Nazaré da Mata – berço, foco e manancial do Cavalo Marinho, uma manifestação cultural, estética e musical, ligada aos trabalhadores da indústria da cana da Zona da Mata norte de Pernambuco. Eu e meu amigo Daruê estamos conversando no ônibus, ansiosos pelo que nos espera: uma noite inteira de música e festa que só terminaria ao nascer do sol e sua aurora de róseos dedos. A questão era como fazer para nos mantermos em pé durante tanto tempo e elementar meu caro Watson, optamos por uma saída à Sherlock Holmes.

Mas antes precisamos fazer um pequeno desvio Vonnegutiano até o ano de 1997 em direção à Rua 7 de setembro no centro da cidade do Recife para um passeio pelo lado selvagem das lojas de discos alternativos, nesse caso, mais especificamente, a Disco 7. A loja mais bizarra, estranha e esquisita que já frequentei.

A Disco 7 ficava ao lado de um antigo e extinto restaurante chinês chamado Kim Sam (hoje ocupada pelo templo do brega 100% Brasil) e era quase como um adendo de outra famosa loja chamada Disco de Ouro de meu amigo Rogério. O intrigante era que funcionava como um Twin Peaks das lojas de discos. Você não encontrava na Disco 7 nada de rock/pop, seu foco estava entre o armorial e o erudito, mas por incrível que pareça ela tinha uma seção de punk ladeada por uma seção de música clássica na qual apenas o dono podia tocar. Entre o manuseio de um Fugazi, você tinha que ficar atento para não tocar num Glenn Gould e levar um carão. E foi nessa lojinha, que parecia mais aquela do filme Gremlins, que escutei pela primeira vez uma banda que sem ser armorial partilhava de seus preceitos porém sem o ranço conservador: o Mestre Ambrósio.

O nome da banda já não era de todo desconhecido pois até já havia perdido shows e tudo da banda no APR. Mas o disco, até àqueles meus dias de vagabundagem e perambulação pelas lojas de discos alternativos do Recife, era. Enquanto fazia uma busca quase sempre frustrada por um e outro vinil do New Model Army ou do Bad Brains, aquela música estranha e crua ia entrando em meus ouvidos. Como era algo no espectro do mangue acabava por ignorar, e nem perguntava ao dono, mas ainda trago comigo aquela sensação de que algo importante estava me escapando. Demorou muito tempo até que sentisse o impacto desse disco mas lembro que desde a alta octanagem do clipe de “Se Zé Limeira Sambasse Maracatu” na MTV, o Mestre Ambrósio, seu ritmo frenético e a crueza de seus timbres nunca me passou desapercebida. O seu som não era baseado apenas na mistura de pop e regional. Algo mais estava ali que apenas encontrei anos depois na obra de Mario de Andrade: respeito, reverência, carinho e cuidado no diálogo e aproximação com a cultura popular.

O primeiro disco do Mestre Ambrósio é um misto de relato etnopoético e deriva psicogeográfica –suas canções nos levam por uma viagem imaginária passando pelas extintas estações de trem da Zona da Mata, igrejinhas em ruínas e o fogo morto dos antigos engenhos de açúcar rumo às veredas agrestes dos forrós pé de calçada dos sítios e fazendas do sertão. Resquícios de um tempo nada idílico em que o coronelismo e clientelismo andavam lado a lado aterrorizando a classe trabalhadora. No entanto, ao mesmo tempo as vozes de resistência dos encantados e seus mistérios são incorporadas de forma orgânica pelos integrantes da banda que em todo momento fazem questão de lembrar o caráter tradutório e interpretativo de sua performance. Além da já citada “Zé Limeira” (mítico repentista surrealista criado por Orlando Tejo), da abertura do disco com “José” até o seu final com “A feira de Caruaru”, passando por músicas como “Usina” e “Pé de Calçada” somos levados a um mergulho nas possibilidades infinitas da música pop em face da ancestralidade da musica popular e seu tempo cíclico.

Tudo isso nos leva de volta a Festa da Alvorada e a minha trip com meu amigo Daruê.

Após nossa chegada brilhante, a medida que o medo do desconhecido ia cedendo espaço ao delírio, a disputa entre os mestres de Cavalo Marinho ia se aproximando de sua apoteose e pouco a pouco fui percebendo o quanto a agressividade da dança estava ligada ao seu ritmo. Alguma coisa me remetia a “Black Angel’s Death” do Velvet Underground e fui me dando conta naquele instante de transe que aquele “pogo” rasgado do calunga com a cabeça cheia de pólvora e cana de cabeça, seja no duelo seja em seu solo de fúria, era o equivalente à sanha de uma roda punk. Seu gingado lembrava inclusive aquele punk das capas do Circle Jerks ou um punk perdido na memória de um show que assisti do Câmbio Negro H.C. no UR-7. Aquilo era tudo verdade. O peso daquela música traduzia-se na performance sem limites daquele corpo e de seu cajado lutando pela maestria de seus anéis. Era assustadora a força moral e física daquela empreitada. Um ano inteiro condensado em instantes de suor e êxtase. Uma experiência religiosa que nenhuma ciência ocidental, nenhuma terminologia estagnada dentro de academias poderiam dar conta. Um homem levando o seu corpo ao limiar da exaustão em nome de uma única verdade: o Cavalo Marinho, sua devoção e vida.

Entendi ainda que aquelas pessoas possuíam uma vida para além de tudo aquilo: eram cortadores de cana, pequenos comerciantes, taxistas, motoboys que se preparavam durante todo o ano para assumirem o papel de reis e rainhas de um mundo, não mágico, pois magia pressupõem truques e aqui não há truques, só verdade real, mas de um mundo transcendente além da minha limitada imaginação. Um universo circular que se move perpetuamente em busca de sua autolegitimação pela dança, pela festa e pelo ritmo. O brilho do sol nascendo apenas confirmou minha suspeita e eu e Daruê retornamos para casa em silêncio nas rodas do mesmo 1002 que nos trouxe.

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Kurt Vonnegut [na Medium] | “Twin Peaks”, de David Lynch | Fugazi | Glenn Gould | Gremlins | New Model Army | Bad Brains | Velvet Underground, “Black Angel’s Death” | Circle Jerks | Câmbio Negro H.C. |

 

Mestre Ambrósio – Mestre Ambrósio (1996) ou “Se dizem que é manguebit, quem sou eu para discordar?”.
Aroldo SóSucesso!

Mantendo o espírito de abertura que começou quando reavaliei CS&NZ, ouvi o primeiro álbum de Mestre Ambrósio com uma generosidade inicial que me chocou(?!). Admirar o trabalho de Chico Science era previsível, já que aquelas músicas estavam assentadas na memória há tempos, intocadas pelas impurezas do meu gosto caprichoso, ainda que eu as tenha retornado ao fundo da cachola, agora num lugarzinho mais organizado, na mesma gaveta em que guardo Black Sabbath, que pra mim é pura expressão de gênio, mas que pretendo morrer sem jamais voltar a escutar de vontade própria.

E Mestre Ambrósio? Olha, acabei ficando confuso mas não deveria. Primeiro, que fique claro porque é muito importante ter isso em perspectiva, que eu ouvi e achei interessante, mas não creio que o revisite. Meu interesse enquanto ouvia vinha de vários lugares e foi marcado fundamentalmente por uma ignorância formal sobre o que era aquilo. Há coisas nesse álbum que destoaram sutilmente do que eu esperava ouvir tanto num produto associado ao manguebit quanto num trabalho de música tradicional pernambucana. A segunda canção, “Se Zé Limeira Sambasse Maracatu”, caiu como uma luva na minha classificação prévia, vaga, estanque e desinformada do que deveria constituir um som manguebit. Guitarras distorcidas, percussão intensa, uma construção fora dos padrões (pra mim) da melodia meio que estruturada como um recital poético, tudo aquilo já estava no meu livrinho mental. Mas daí foi vindo o resto e eu já não sabia mais nada sem sons que corroborassem minhas muletas argumentativas, não sabia o que era típico e tradicional, o que era experimento, excentricidade, inovação, nem se um álbum típico não poderia ser também experimento (e, principalmente, não sabia se minhas indagações tinham qualquer relevância). A conclusão mais óbvia e apressada aqui, e espero que minimamente correta, é que as razões para esse álbum ser considerado representante do manguebit têm mais a ver com o espírito da época do que com o produto musical que ficou de herança. Jovens urbanos decidem revitalizar gêneros tradicionais do lugar com instrumentação atípica e hibridismos sutis em 1996? Manguebit, pois.

Voltando à segunda faixa, a canção “””rock”””, para ver se de seu hibridismo ostensivo eu consigo identificar o que há de similar no resto do álbum e que permita identificar o que há aqui que seja permeado por esse espírito manguebit, ou seja, de reinvenção da tradição (a definição é essa, né?), me dou conta de que “sambar um maracatu” me parece uma contradição terminológica. Pesquiso rapidamente e descubro que, em “Mas Que Nada”, Jorge Ben já associava samba ao maracatu. Não sei se descubro algo com isso, se apenas escancaro minha ignorância ou se, pior, parto de um dado irrelevante para gastar verbo. De qualquer modo, com ou sem respaldo histórico, acho que a chave da inventividade de “Se Zé Limeira Sambasse Maracatu” é que ela não ostenta sua ousadia, mesmo sendo a coisa mais formalmente diferente do que se esperaria ouvir de um álbum de música popular daqui. Os tambores do maracatu são tão pesados de qualquer modo, que, nas vezes que acompanhei uma roda, a energia parecia muito próxima ao heavy metal, ainda que eu me entediasse rápido (hoje me tornei uma pessoa melhor e o metal também acaba com a minha beleza). O tipo de nuance que afasta o som de Mestre Ambrósio de suas origens é justamente a multiplicidade de origens, de ideias que combinam e se tornam uma coisa só, como água e café, e menos ou nada de excursões sonoras inesperadas. Não sei o que Ariano Suassuna disse ou teria a dizer das guitarras esparsas nesse álbum, mas a mim essa música soa profundamente deste lugar – eu que venho do Sudeste / Sul do Brasil – e eu posso imaginar muitos se emocionando com esses arranjos quase barrocos emoldurando cantorias simples, porque há algo de universal aqui capaz de me fazer entender por que existe essa música, mesmo que ela não me atraia.

Pois é, provavelmente não voltarei a ouvir, não desse modo, como álbum. O gosto é uma coisa complicada e nem toda rejeição é preconceito, mas algumas rejeições mesmo assim têm a ver com uma dificuldade de entrar no espírito da música, que, mesmo que a gente reconheça como valiosa, torna-se um “não é pra mim”. Há certos modos de cantar, o chamado e resposta dos refrões, os trejeitos vocais, a forma mesma, enfim, da música, que não reverberam na minha sensibilidade. Acho que isso não é bom nem ruim mas espero, e isso é importante, que seja passível de mudar. Esse não é um disco que me soa ruim. Soa repetitivo como Beethoven pode soar para um cidadão que nunca frequentou uma sala de concerto, mas, dentro de cada canção, reconheci riqueza de arranjos e instrumentação que me pareceram muito, mas muito diferentes e melhores que, sei lá, o tipo de forró que chegou aos meus ouvidos até hoje.

Esta resenha foi toda escrita sentado sobre um muro pedregoso aqui em Candeias, o que explica a brevidade e o malabarismo pra fugir pela esquerda.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Black Sabbath | Jorge Ben | Ariano Suassuna | Beethoven |

 

>FICHA TÉCNICA

Mestre Ambrósio é:
Siba: Rabeca, Viola, Guitarra e Voz;
Hélder Vasconcelos: Fole de 8 Baixos, Percussão e Vocal;
Mazinho Lima: Baixo, Triângulo e Vocal;
Sérgio Cassiano: Percussão e Vocal;
Maurício Alves: Percussão
Eder ‘O’ Rocha: Percussão.

Maioria das faixas escritas por Siba, exceto “Benjaab” de Siba e Lenine, “Forró de Primeira” de Heleno dos 8 baixos e Helder Vasconcelos, “Estrela Amazona” do Cavalo-Marinho do Mestre Batista, “Usina (Tango no Mango) de Paulírio e Chico Antônio, “Pipoca Moderna” de Sebastião Biano e Caetano Veloso, “A Roseira (Onde a Moça Mijou)” de Luiz Oliveira e Waldemar Oliveira, e “A feira de Caruaru” de Onildo Almeida.

Selo: Terreiro Discos.

Produção: Lenine, Marcos Suzano e Denílson Campos.

Chico Science & Nação Zumbi, Da Lama ao Caos [BRA, 1994].

[Pra ouvir, clique aqui.]

 

Atenção: abaixo segue três textos diferentes escritos cada um por um autor diferente.

 

Da Lama ao Caos: política, estética ou envelheço na cidade.
Mateus SóSucesso!

Quando Chico Science explodiu, eu era moleque.

Meio punk, mais pro death metal, cena que explodia no underground de Recife na década de 1990, tinha abuso de Chico Science. Achava poser, palavra derivada de “pose”, termo que apontava os outros como pimpão e só aparência, palavra que falava do meu sectarismo e daquela minha adolescência. Tudo que não fazia parte do som extremo era poser.

A cena extrema crescia no Recife da década de 1980 e depois, mas aos poucos foi perdendo espaço. Chico Science – assim como o Nirvana num plano global – tomou conta do Brasil. Daí, tal como o grunge nos EUA, rolou o mesmo com a aparição de CS&NZ, aqui: pra uns os holofotes, pra outros, as sombras.

Só que esse fenômeno não ocorreu por combustão espontânea, pela “natureza dos fatos”. Nenhuma obra possui valor por si e em si. Não é sua qualidade que a torna hegemônica. Como bola da vez, o manguebit era propagandeado pelo caderno Ilustrada da Folha de SP, assim como pela Bizz, revista brasileira cujo foco era o “rock alternativo” – o indie antes do indie –, uma das principais revistas da época. A própria Bizz, na década de 1980, já havia apostado antes em várias bandas que por sorte seriam “a próxima grande coisa”, bandas especialmente do Sudeste, como Fellini, Vzyadoq Moe, Picassos Falsos etc. Em comum, eram bandas que trabalhavam em maior ou menor grau com uma reformulação pop do cancioneiro popular – em particular do samba. Similarmente, na década de 1970 houve em Pernambuco toda uma movimentação que remexeu na música popular nordestina, com discos psicodélicos como os primeiros de Robertinho de Recife, o Paêbirú, Marconi Notaro etc. Ou seja, bem antes do manguebit, em mais de um momento a música pop brasileira foi laboratório e liquidificador. Só que nenhuma dessas cenas logrou êxito. Ficaram no underground, em banho-maria.

É preciso mais que uma extrema particularidade musical pra tornar uma cena cultural algo próximo do que foi o manguebit e CS&NZ. Pois muito além dos exemplos citados, se o único critério for o da particularidade como destino manifesto pro sucesso, os próprios mestres e mestras da cultura popular teriam “naturalmente” o mesmo reconhecimento – compositores como Dona Cila do Coco, Mané Pitunga, Zabé da Loca etc. Porém, não é o que ocorre. Há uma inflação da importância dada aos tradutores da música destes mestres e mestras, e aqui quando falo de tradutores, falo dos e das que trazem pra modernidade capitalista e urbana a música feita pelo próprio povo, alijado do capital cultural (instrução formal e universitária), político (capilaridade no Estado) e, notoriamente, econômico.

CS&NZ, enfim, foi uma banda abraçada pelo mainstream da MPB. Além, Chico tinha uma grande capacidade de conciliação, mesmo com seus antagonistas – lembro aqui então da conversa com Ariano em que disse ser seu “coração, armorial”. E mesmo a banda sendo integrada por um mix de diversos logradouros da Grande Recife, sua plateia era na década de 1990 também composta por estratos da intelligentsia local, gente com formação universitária, que tinha canal na imprensa etc. CS&NZ e o manguebit conquistaram a classe média já de partida, tanto pela sonoridade única – que é óbvio, tinham – quanto pelo próprio caráter de movimento que imprimiram àquilo que produziam. Ademais, o Abril Pro Rock, festival que bombou Recife pro país, amplificava aquilo que diziam os e as integrantes do manguebit, retroalimentando-se. Entretanto, depois, com a morte trágica de Chico houve um processo de “bobmarleyzação” de sua figura, como uma vez disse alguém não sei quando, fazendo com que se tornasse um ícone muito além de fronteiras.

Isso tudo que digo descredencia Chico? Isso tudo desmerece seu som e o dos demais? Muda aquilo que sinto ao ouvi-lo, hoje?

Não, na real.

Mesmo quando menino e sectário pra cacildis, fiquei de cara quando me dei uma chance e entendi o que era dito por exemplo em “A cidade” – é até óbvio dizer isso, mas não era pra mim na época… Mas havia algo mais. Quando me tornei estudante universitário, pegando o bonde dos encontros estudantis, viajei um bocado e com a fala dos outros caiu a ficha do quanto meu sotaque era específico. Fui assim notando que Chico Science, além de performer jeitoso, reforçava o cantadinho daqui, de Recife, como o punk tinha feito com o cockney (sotaque da classe trabalhadora inglesa). Fiquei incrível quando saquei isso.

De mais a mais, Nação Zumbi era um jab (murro de um boxeador). De um lado, possuía um guitarra que unia, sem esforço, um peso ganchudo metal com um balanço funk de um Nile Rodgers (ex-guitarrista da Chic). De outro, a percussão não era refém de nenhum ritmo tradicional de Pernambuco, uma obra-prima: uma hora era coco, outra ciranda, daí era maracatu etc. Se engana quem acha que CS&NZ é, na percussão, só maracatu. “Coco Dub” evoca brincantes dando umbigada numa roda de coco, por exemplo – o título já denuncia, né?

E por mais que a beleza áspera mas envernizada de Da Lama ao Caos me agrade bastante no conjunto, a faixa que me deixou de fato com os quatro pneus arreados foi “Risoflora”, bem menos mencionada que as outras, melhor canção certamente. Tempos depois descobri que essa música encantadora tinha sido feita pra uma pessoa igualmente encantadora, uma brother, Maria Duda. Mesmo com muitos amigos em comum, só há pouco nos conhecemos. Grande música. Grande disco. Pessoa massa.

É isso, Da Lama ao Caos é um pouco de mim hoje, calvo, magro, com um buchinho, circulando na cidade (“de andada”, na fala de “Risoflora”), um tanto efusivo, com uma raiva contida. Da Lama ao Caos sou eu, são meus amigos e amigas ao redor, menos sectários, mais coroas, dando rolé.

Na real na real, esse disco é um pouco desse meu amor pelos que me circundam. Ou na verdade, amor por aquilo que pra mim é um misto de cela e horizonte: minha cidade, você, Recife.

É a você que dedico esta resenha.

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Morbid Angel em Recife [1992] | Nirvana | Fellini | Vzyadoq Moe | Picassos Falsos | Robertinho de Recife | Lula Côrtes e Zé Ramalho, Paêbirú | Marconi Notaro | Dona Cila do Coco, LIVE 2020 | Zabé da Loca | CS&NZ + Gilberto Gil, “Macô” | “Chico Science vs Ariano Suassuna: Battle for Pernambuco”, por Meteoro Brasil | Crass, “White Punks on Hope” | Daft Punk + Nile Rodgers + Pharrell Williams, “Get Lucky” | Chic | CS&NZ, “Coco Dub” | CS&NZ, “Risoflora” |

 

Chico Science e Nação Zumbi – Da Lama ao Caos ou “Que massa, doido, isso é Chico, né?”
Aroldo SóSucesso!

Nunca soube bem o que pensar de Chico Science e Nação Zumbi. Peguei boa parte do hype (em 1994, estava no Rio Grande do Sul, mas em meados de 1995 já morava em Pernambuco), percebia a atmosfera de orgulho local, mas tinha minhas predisposições refratárias, sendo roqueiro anglófono e alguém que nunca sentiu raízes em lugar nenhum.

O que eu notava é que havia algo distinto e marcante ali. A isso hoje dou o nome de talento, mas na época me era o retrato acabado do que não me interessava na música pop, uma coisa assim tão fora das minhas raízes geográficas imaginárias (morava então na divisa entre Boa Viagem e Manchester), uma coisa tão tropical, cheia de areia e orgulho periférico que, quando me perguntavam a opinião, era evasivo, dizia que achava Da Lama ao Caos interessante, mas, morador de Recife que apesar era, não fazia ideia, nem queria, de onde ficava metade dos lugares citados em “Rios, Pontes e Overdrives”. Estava confortável demais em meu quarto de apartamento, me achando a última Coca-Cola do deserto por conhecer Stereolab.

Hoje conheço todos os lugares citados por Chico e mais uma centena de outros espalhados pela Região Metropolitana de Recife porque sou motorista de aplicativo. Do lado de dentro do carro, mas longe de ser impermeável e alheio, a crítica social urbana das letras a mim permanece válida e também difusa. Os homens roubados, ao contrário do discurso de wishful thinking (de “auto-engano”) empoderador, de Chico, continuam sendo roubados. Mas é um arroubo poético, muito mais justificável que dizer que “uma erva natural não pode te prejudicar”, que é só uma tolice mesmo.

Munido dessas ponderações todas e conhecimento mínimo (e um preconceito já muito diluído no tempo), decidi manter o álbum em loop no meu carro para ver a reação dos passageiros, a maioria mais jovem do que eu e de todos os cantos da Região. Uns 50% faziam questão de falar da música, e, desses, metade cantava junto. Duas moças de quem não vi o rosto mas que acusaram a origem ao afirmar terem ido a um show do Nação Zumbi no Rock in Rio cantarolavam partes grandes, sem errar a letra. E eu conversava, claro. Todas e todos eram só elogios à música (e eu ficava pensando nas estrelinhas que receberia depois, a que ponto cheguei). Eu percebia um orgulho forte. Vinte e seis anos depois de estrear em LP, CS&NZ não é mais a força aguda dos anos 90, mas se entranhou na mente e alma do Recife e arredores.

Eu, que nunca havia pego o álbum para ouvi-lo inteiro, me surpreendi em conhecer mais da metade das músicas (e de modo fresco na memória, como só as músicas mais marcantes conseguem), cantando mentalmente, emulando mentalmente o modo de cantar de Chico Science, que eu costumava achar tão desagradavelmente afetado.

O resultado do meu “estudo” foi interessante, um tanto prejudicado pela necessária atenção ao trânsito e às lombadas tenebrosas, mas a metodologia era mínima de qualquer modo. Como eu, as partes que as pessoas cantavam eram marcadas pela força da melodia, não pelas palavras, e esse é um álbum de melodias inspiradas. A primeira metade já é um apanhado de hits, de músicas que tocaram à exaustão em rádios, bares e casas. Apesar de nunca ter sido abstêmio, sempre me incomodou um pouco a ideia de que alguém beba uma cerveja antes do almoço para ficar pensando melhor, quando tudo o que eu consigo imaginar é sono. Pensei até em perguntar aos passageiros o que eles pensavam das letras, mas me lembrei das estrelinhas e usei, nesse único ponto, o expediente pusilânime de chegar a minhas próprias conclusões prévias adulterando a metodologia (vulgo cagonice), e presumi que diriam algo como “massa”, “puta crítica social foda” ou “hã?”. Em suma, dotado da minha sensibilidade, imaginei que concordariam com a sucessão de palavras tomada mais como música, mas que talvez não propriamente com seu sentido literal. Que, inclusive, não há. Da Lama ao Caos não é um álbum panfletário, mesmo que cite Zapata e exponha as contradições sociais da grande cidade. É um álbum de emancipação a partir do orgulho de reconhecer que a cultura periférica a que se pertence é rica e essa mensagem primordial conseguiu ser passada convincentemente. Suponho que nem Chico Science imaginasse que a cerveja antes do almoço aguce a mente, mas que ela pode ajudar a se sentir, por um instante, mais livre da burocracia, do lado patronal da cidade. Como um Travis Bickle (personagem principal de Taxi Driver) menos neurótico, eu via além da pauperização óbvia enquanto CS&NZ tocava, enxergando os contrapontos à tristeza aflorando não raro nos mesmos lugares onde ela estava.

Chico Science falou em revoluções, mas seu discurso era brando e tornou-se mainstream. Dizer que o de cima sobe e o de baixo desce é tão sociologicamente tautológico que meus passageiros de Casa Forte cantavam essa parte a plenos pulmões, sem cinismo. É complicado medir o legado de Chico Science e Nação Zumbi neste e no álbum seguinte, enquanto Chico ainda estava vivo. Não é bem um legado politizado, e, como música, apesar de fazer parte do manguebit, o som de Da Lama ao Caos permanece muito singular, o que é de certo modo prova de sua originalidade extrema. O legado me parece meio como uma estátua gigantesca no horizonte da cidade, muitas vezes envolta em nuvens, que todo mundo sabe estar ali mas de cuja construção poucos se lembram ou conhecem a história. Alguns a admiram de vez em quando em seus trajetos cotidianos e isso alivia momentaneamente a barra, outros talvez reclamem com seus botões, mas sua presença é inevitável.

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Stereolab | Wishful thinking [Wikipédia] | Planet Hemp, “Legalize Já” | Emiliano Zapata  | Travis Bickle, Taxi Driver |

 

O dia que Chico Science morreu.
George SóSucesso Yeah!

Há certas coisas na vida que antes de acontecer já sabemos que vão ser objeto de arrependimento, mas as forças do acaso atuam com tal orquestração que somos levados a acreditar na intencionalidade da sorte e na inevitabilidade da mão invisível de Destino, o quarto irmão de Sandman (HQ de Neil Gaiman) dos Perpétuos. Eu, por exemplo, nunca assisti a um show de Chico Science. Apesar de ser nascido e criado no Recife, ainda era muito novo para frequentar certos espaços alternativos como a Soparia e o Sucata quando o mangue surgiu no horizonte entediante da música pernambucana mainstream dos 80/90. Já no auge de seu sucesso, não sei se por acaso ou vacilo, toda vez que cheguei perto de assistir um show da CSNZ, fui impedido por algum acontecimento bizarro. Não que fosse o maior fã das sonoridades mangue. Eu era um headbanger juvenil. Pelo radicalismo dos tempos, era interdito qualquer forma de consideração com a música pop e apenas a menção ao manguebit já era motivo de dúvidas sobre a autenticidade de sua fé no underground. As únicas manifestações artísticas permitidas eram shows do Câmbio Negro H.C., Decomposed, Realidade Encoberta e as bandas do Alto José do Pinho (Devotos do Ódio, Terceiro Mundo e Matalanamão).

A primeira vez que Destino nos colocou frente à frente, foi no clássico show de Maracaípe no “Seaway Surf” de 1995, aos quinze anos. Tinha ido mais pela gréia do que para ver campeonato de surf ou qualquer show. O problema foi que queimei a largada, passei do ponto e capotei. Quando acordei já era de noite e todos na casa em que estava haviam ido ver os shows de encerramento do festival. Após alguns minutos ao som de grilos e sapos voltei a mim e com a energia recarregada, resolvi me dirigir ao pontal de Maracaípe, local dos shows, mas para minha surpresa não havia mais ingressos e não encontrei nenhum de meus amigos roadies para me colocar pra dentro. Tomei dois vinhos Carreteiros ou três, ainda na esperança, mas sem dinheiro e sem ingresso resolvi fazer a longa jornada para casa com o rabo entre as pernas, apenas para acordar no outro dia e saber que os tapumes haviam sido derrubados pelo público que havia ficado de fora como eu, instantes após minha saída. Só não entrou quem não quis. Como diria o Graforréia Xilarmônica, “se arrependimento matasse…”.

A segunda vez foi no Abril pro Rock de 1996 que ainda era no Circo Maluco Beleza, no bairro das Graças, em Recife, naquela que veio a ser a primeira edição com a divisão entre peso e pop nas noites do festival. Junto com o carro chefe Camisa de Vênus, uma miríade de bandas do underground roqueiro nacional fariam shows memoráveis: Devotos, Concreteness, Living in the Shit, Brincando de Deus e a primeira atração internacional do Abril, dEUS. Isso na sexta. No sábado seria o grande encontro da cena mangue: Eddie, Mestre Ambrósio, Mundo Livre e CS&NZ. Compareci com sangue nos olhos e Carreteiro nas veias para a essa memorável noite de sexta, já reservando a possibilidade de assistir a tal noite de celebração da cena mangue por curiosidade e diversão no dia seguinte, sábado, já que meu radicalismo começava a esmorecer. Porém, para meu azar, em algum momento turvo em minha memória, torci o pé, o que no entanto só seria percebido no outro dia ao acordar às cinco da tarde. Mais uma vez, meu encontro com Chico acabava por ser frustrado: só fui liberado do hospital quando os shows já deviam estar iniciando e mesmo assim, o gesso fresco e o olhar de minha mãe não permitiriam.

A terceira e fatídica vez foi no carnaval de 1997. Após tomar contato com Bob Dylan, Smiths, Cure, Velvet Underground e Snoopy Dog, percebi que gostar de metal ou de punk não invalidava gostar de música. Nesse ano, seria o ano que Chico tocaria no carnaval em um trio, sem ingressos ou chances de torções prévias. Porém, no dia 3 de fevereiro, até hoje não esqueço, numa tarde iluminada de verão sem nuvens, sentado em uma esquina escutando “The Day That John Kennedy Died” de Lou Reed no meu walkman, um amigo me deu a noticia: Chico Science havia morrido em um estúpido acidente de carro na noite do dia anterior e seu enterro estava acontecendo no Cemitério de Santo Amaro naquele instante. Não tive dúvidas, saí em disparada, porém cheguei apenas ao fim de uma cerimônia comovente em que todos cantavam suas músicas. Quis Destino que o meu único e derradeiro encontro com Chico fosse marcado pelo signo da ausência, e ali, diante do cimento ainda fresco de seu túmulo, percebesse que não estava mais diante da morte de um homem, mas testemunhando o nascimento de um mito. Descobri que a relação de dualidade entre vida e morte é contingente e inescapável porém entre o destino e a liberdade sempre temos uma escolha. A minha foi a de prestar-lhe uma última homenagem por meio desse texto.

O resto da história todos sabem: Chico é considerado um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos e o seu legado continua duas décadas após sua morte. Da Lama ao Caos é um disco que sintetiza um momento único do pop nacional com suas referências cruzadas a emboladores e cantadores de coco e maracatus-nações, ícones do hip-hop como Kurtis Blow (a quem Chico deve muito de seu flow) e Grandmaster Flash e heróis esquecidos do underground nacional como Felinni, Picassos Falsos e Black Future. Um disco que dialogava com tudo que acontecia no mundo à época, do jungle ao grunge, sem esquecer da tal pegada regional que, no fundo, era apenas uma forma de demonstrar a universalidade da música, seja ela advinda dos afoxés de Peixinhos, dos inferninhos do Rio de Janeiro ou dos guetos do Bronx.

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Sandman, HQ de Neil Gaiman | Perpétuos [Sandman] | Câmbio Negro H.C. | Decomposed | Realidade Encoberta | Devotos do Ódio | Terceiro Mundo | Matalanamão | Graforréia Xilarmônica, “Se Arrependimento Matasse” | Concreteness | Living in the Shit | Brincando de Deus | dEUS | Eddie | Mestre Ambrósio | Mundo Livre | Bob Dylan | The Smiths | The Cure | The Velvet Underground | Snoopy Dog | Lou Reed, “The Day That John Kennedy Died” | Kurtis Blow | Grandmaster Flash & The Furious Five | Felinni | Picassos Falsos | Black Future |

 

>FICHA TÉCNICA:

Todas as canções foram escritas por Chico Science, exceto “Rios, Pontes & Overdrives” (Chico Science e Fred Zero Quatro), “Maracatu de Tiro Certeiro”, (Chico Science e Jorge du Peixe), “Salustiano Song” [instrumental] (Chico Science e Lúcio Maia), “Lixo do Mangue” [instrumental] (Lúcio Maia), “Computadores Fazem Arte” (Fred Zero Quatro).

Gravadora: Chaos/Sony Music.
Produção: Liminha.

Chico Science: voz e samplers em “Lixo do Mangue”
Alexandre Dengue: baixo.
Canhoto: caixa.
Gilmar Bolla 8 e Gira: alfaia.
Jorge du Peixe: alfaia e tonel em “A Cidade”.
Lúcio Maia: guitarras.
Toca Ogam: percussão e efeitos.

Convidados:
André Jungmann: berimbau em “Maracatu de Tiro Certeiro”.
Chico Neves: samplers em “Rios, Pontes & Overdrives”, “A Cidade”, “Samba Makossa”, “Antene-se” e “Côco Dub (Afrociberdelia)”.
Liminha: grito em “Lixo do Mangue”.

Editorial #ESPECIAL MANGUEBIT

MangueBIT era na origem escrito assim, com “i”. Só que a imprensa insistiu tanto em mangueBEAT, de “batida” em inglês, que geral se rendeu. Entretanto, mais que uma mera letra, a questão aqui, acreditamos, é de substância.

Chico Science & Nação Zumbi (que abreviaremos nos textos para CS&NZ), Mundo Livre S/A, Mestre Ambrósio e Comadre Fulozinha – bandas deste #Especial – tinham bem pouco em comum no som, mas se ligavam numa postura: o manguebit não se prendia à idealização do passado, e indicava o futuro a partir do que era presente em certa juventude da época. E era exatamente esse caráter de “futuro” que dava o sentido pro “bit”, já que “bit” é a menor unidade computacional.

De modos que, aqui, não dá pra passar batido do embate histórico acontecido naquele instante. Em posição de denúncia, Ariano Suassuna apontava o dedo contra a guitarra de “Chico Ciência”, que seria um instrumento metonímico da indústria cultural, a grande inimiga. Neste rastro, o movimento armorial afirmava uma outra modernidade, de feição conservadora, uma modernidade com cara de passado. Ensimesmando-se num ultra-nacionalismo romântico, o movimento armorial ilhava Pernambuco feito fosse um castelo medieval cercado por fosso com jacarés. Na real, castelo não: casa-grande seria mais apropriado.

Talvez aí esteja a diferença com o armorial: o manguebit era ávido de futuro, e de certa forma retomava os passos do tropicalismo no estado, com as agitações de Jomard e seu [filme] O Palhaço Degolado, assim como da onda psicodélica da década de 1970, no qual o disco Paêbirú é certamente um marco. Porém, um ponto essencial distinguia este movimento dos outros: o contexto. Na década de 1990 despontava uma nova revolução tecnológica, a dos micro-computadores, e o manguebit fazia da ferramenta, símbolo e obra de arte. O manguebit flertava com o sci-fi.

Porém, nem tudo deslizava e era assim tão doce como quer certa convenção laudatória. Todos nós, da SóSucesso!, viemos de outros circuitos, em geral do rock derivado do punk ou do rock pesado como um todo, como há de se perceber em nossos textos. Vivemos na pele o eclipse de um período e a alvorada de outro. Nem tão eclipse assim: Carlos do zine “Recifezes” e Wilfred Gadêlha e a equipe do “PEsado” dão o relevo devido a essa cena que foi e ainda é fundamental pro estado. Circuito no qual permanecemos, agora com “enta”, menos facciosos.

E é tomado deste espírito, hoje bem bem bem mais ponderado, que resenharemos os primeiros discos de todas estas bandas e artistas. Daí então convidamos a todas e todos darem uma passada d’olhos neste #Especial, que vai ser lesgal al al.

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O Palhaço Degolado, de Jomard Muniz de Britto | Lula Côrtes & Zé Ramalho, Paêbirú | Quadrinho e encarte de Da Lama ao Caos |