Conde Só Brega, “Cheli” [BRA, 2004].

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REMENDO: A gente se propõe a escrever crítica, a gente vai e pesquisa, só que daí o fato é que os TRÊS textos abaixo de TRÊS PESSOAS DIFERENTES que tiveram semanas pra fazer o serviço contêm uma omissão que é pura patacoada: “Cheli” é uma versão de “Ilyne”, música lançada pela banda Exile One, de Guadalupe, no álbum Face Au Public, em 1975, e composta por dois de seus membros: Gordon Henderson e Julie Mourillon. Não fosse pela imediata reação de nosso amigo Victor Zalma, que conhece muito de música caribenha, talvez a gente morresse sem descobrir e, pior, dando tapinha nas costas um do outro e dizendo “pouhan, que pesquisaço esse teu, véi!”, “que nada, tu que sois foda, sabe tudo da parada”. Pois é. Ajuda ser a Internet terreno minado de desinformação e, dado o preconceito contra o gênero, a música brega sofrer de modo particularmente grave com isso? Claro que não, fera, e a velocidade com que Zalma apontou o erro mostra que há canais sim pra se tentar minimizar os danos e o mais óbvio e certo é ouvir música, conhecer as coisas na origem, se cutucar pra conhecer mais e, consequentemente, não ficar à mercê de fichas técnicas furadas. Em tempo: os textos permanecem inalterados, porque nada mudou de nossa opinião. “Cheli” continua com todos os seus méritos, inclusive porque tem uma pegada diferente da original. Sabe a versão de Bauhaus pra “Ziggy Stardust” de David Bowie? “Cheli” é meio que essa vibe. A estrutura é a mesma, mas o calor e o tchans é outro.

 

Atenção: abaixo segue três textos diferentes escritos cada um por um autor diferente.

 

Faço de meu hit o que quero: Conde é mais que “Cheli”.
Augusto SóSucesso!

Dentro da série de textos sobre one hit wonders (algo como um só sucesso nas paradas, em português), se torna um tanto injusta a ilustre presença do nosso ex-candidato a prefeito do Recife, o único e indômito Conde, vocalista da banda Só Brega. Conde e a Só Brega foram junto com Kelvis Duran, Vício Louco, Kitara, Labaredas, Banda Lapada e a Banda Metade de Michelle Melo, um dos responsáveis pela explosão comercial do brega em meados de 2000, em um movimento tão forte que ajudou a estourar a bolha do preconceito ligado ao ritmo, impulsionando-o dos estúdios de fundo de quintal e das festas de associações e clubes dos subúrbios para as festinhas e hostes da classe média. Se hoje um Shevchenko e Elloco tocam no RecBeat ou Musa do Calypso e Sedutora já são considerados artistas e divas pop, muito se deve a esse quase-movimento que envolveu uma associação única entre produção, distribuição e divulgação só possível a partir de certos avanços tecnológicos. Um gravador de CD e uma impressora criaram toda uma indústria de auto-pirataria de fazer inveja à onda de mixtapes do hip-hop americano. Aqui, faz-se mister uma breve explicação e digressão sobre o caráter da música brega no Recife: apesar de nos anos 2000 chegar a ter seu próprio festival e tudo (o Abril pro Brega, em uma genial paródia ao Abril Pro Rock), o brega no Recife não teve esse caráter de movimento unificado por uma estética homogênea como o tecnobrega do Pará, ainda que compartilhe de suas origens como indústria de massa gambiarrística, mas antes foi uma conjugação de forças que já vinham se alinhando há quase uma década e que tem como origem dois marcos específicos: as fitas k-7 piratas de cúmbia/salsa/merengue vendidas no sebo do INSS da Av. Dantas Barreto e as festas da Cubana no Alto Santa Teresinha e do Clube das Pás no Prado – todas na cidade de Recife.

Ainda me lembro, no auge dos meus 18 anos, indo comprar vinis de rock nesse sebo e por acaso ser agraciado com a escuta de alguns sons latinos pela primeira vez. Sons que mais tarde iriam se tornar bastante familiares a partir de um combo de curiosidade, disponibilidade e preços acessíveis dos vinis: Bienvenido Granda, Perez Prado, La Sonora Dinamita, Los Graduados, Trini Lopez, entre outros. Todos estes artistas acabaram por se imiscuir em minha formação roqueira e abrir a derradeira porta mais tarde para bandas como Só Brega, Labaredas, Walter de Afogados e Banda Camelô. Não era uma questão de ser cult, mas era a mais derradeira comprovação da veracidade do pequeno slogan que a indústria fonográfica brasileira encontrou nos anos 70 para promover seu produto a um status mais elevado: “Disco é Cultura”. Foi essa cultura de comprar e colecionar discos de vinil que me fez conhecer esses universos completamente diversos daqueles que eram esperados para um fã de punk rock. Frequentar o sebo do INSS, mais do que qualquer outro nos anos 90, era como estar em uma aula de world music: do brega ao forró, passando pelo universo da música romântica francesa e espanhola, guaranias, música de terreiro, sambas de toda ordem e o hard rock farofa dos 70 e 80 (de Nazareth a Dire Straits) e muita mas muita cúmbia, salsa e merengue.

Se por um lado, tínhamos como mentor punk Will da Vinil e seus ensinamentos acerca do universo em três acordes, era nos sebos do Centrão que nos deparávamos com a diversidade da música popular, que despertava a curiosidade menos pelas capas do que pelas sonoridades traduzidas na pergunta: quem é esse que está tocando? Essa era a chave para todo um aprendizado inesperado acontecer, pois cada sebista era um profundo conhecedor não só do valor, mas também das características musicais de seu produto, verdadeiras Wikipédias ambulantes, que infelizmente com a fetichização do vinil acabou por criar, hoje, uma casta de exploradores que se disfarçam de conhecedores apenas para lhe empurrar um disco que custou cinquenta centavos por cinquenta reais. Era comum você encontrar um Johnny Cash raro importado ao lado de um disco do Crass, tudo por cinquenta centavos.

Mas deixando a nostalgia e retroísmo de lado, o que tudo isso tem a ver com “Cheli” e o Conde do brega da Só Brega?

Acontece que no meio desse caldeirão de cores, nomes e sons, vez ou outra tínhamos a oportunidade de escutar a já então crescente cena do brega recifense. Apesar da memória falha, tenho quase certeza de escutar Labaredas pela primeira vez no INSS e muito provavelmente devo ter ficado ombro a ombro com o Conde do Brega, pois nessa época, em que gravadores de CD eram basicamente inexistentes, assim como os estridentes e onipresentes carrinhos de vender CD que povoaram o Recife nas primeira décadas do milênio (diga-se de passagem os maiores divulgadores e distribuidores do brega na cidade), a forma que esses artistas se utilizavam para divulgar sua música era a fita k-7 vendida no sebo do INSS, ou seja, além de influenciar na música desses artistas, esse espaço perdido entre prédios, no fim da avenida que leva do nada a lugar nenhum, acaba por tornar-se um centro de distribuição e divulgação desse novo brega menos “carbonário” (de Carbonos, a banda que tocou em 8 de 10 discos de brega dos anos 70/80) e bem mais caribenho.

A música do Conde é fruto desse processo e “Cheli” com certeza um dos seus mais bem acabados produtos. Além da forte influência de cúmbia e merengue, “Cheli” compartilha um pouco do espírito indômito de um Tito Puente, com seus andamentos progressivos, viradas de tempo e pausas dramáticas. Sem dúvida uma grande canção que junto com “Não Devo Nada a Ninguém”, “A Vida é Assim” e “Saudade de Rosa” (versão de mesmo nomes da de Bartô Galeno, minha preferida) fazem da obra do Conde um grande festival de hits da Só Brega, pra vocês!!!

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Eleição municipal do Recife em 2004 [Ano de candidatura do Conde Só Brega, Wikipédia] | Kelvis Duran | Vício Louco | Kitara | Labaredas | Banda Lapada | Banda Metade | Shevchenko & Elloco | RecBeat [Site Oficial] | Musa do Calypso | Sedutora | “Mas Afinal o que é uma Mixtape?” [Matéria do site Caboindex] | Abril pro Brega [Facebook] | Bienvenido Granda | Perez Prado | La Sonora Dinamita | Los Graduados | Trini Lopez | Walter de Afogados | Banda Camelô | “Disco é Cultura: um tempo de incentivos fiscais para a indústria fonográfica” [Sobre o slogan “Disco é Cultura”, no site IMMuB] | Nazareth | Dire Straits | Os Proletários [banda na qual Will da Vinil era vocal, YouTube] | Johnny Cash | Crass | Carrinhos de vender CDs  | “Merecia o Guinness? Banda brasileira pode ter gravado 50 mil músicas”, por André Barcinski [Blog do Barcinski, UOL] | Tito Puente | Conde Só Brega, “Não Devo Nada a Ninguém” | Conde Só Brega, “A Vida é Assim” | Conde Só Brega, “Saudade de Rosa” | Bartô Galeno, “Saudade de Rosa” |

 

Conde Só Brega é esse Caribe no meu peito.
Mateus SóSucesso!

Recife é um pedaço do Caribe no Brasil, e o Conde Só Brega é um nó disso. Engraçado que essa tese não é abertamente defendida em praça pública nem é consenso. Porém, curiosamente descobri essa citação de Chico Buarque sobre uma fala de Gabriel Garcia Márquez:

“Gabriel Garcia Márquez, que foi um dos que me convidaram quando fui pra Cuba pela segunda vez participar do Festival Califiesta, defende a teoria de que o Brasil, da Bahia para cima, faz parte do Caribe”.

O Brasil tem essa mania feiosa de ensimesmar-se. É como se tudo brotasse daqui, da genialidade única do nosso povo. Isso é mais ou menos compreensível, afinal o país é um continente, daí fica naquelas de achar que é mais continente que o restante do continente no qual tá.

A música brega não é uma cria brasileira ilhada. Aqui ali a gente acaba descobrindo uma ou outra música que é versão de uma outra gringa, tipo “Dizem que Sou Louca”, da Banda Kitara, versão de “Loca” de Thalia – mexicana –, ou “Baby Fala pra Mim”, da Musa do Calypso, que é versão de “Quelqu’un M’a Dit” de Carla Bruni – franco-italiana. Não entender isso é achar que o povo é um bichinho engaiolado na “nação”, além de esquecer o papel da indústria cultural no meio de tudo. Mais que isso, à última letra, quem escuta rádio é um apátrida na real.

“Cheli”, do Conde, tem puxada de cúmbia. Aliás, o som do Conde é um entreposto da música cafona da década de 1970 com ritmos latinoamericanos no qual já ali, na década de 2000, apontava pro melody que apareceria tempos depois, sub-gênero do brega que iria se desenvolver com bandas como Musa do Calypso e Sedutora, no qual o romantismo e a melodia (daí o nome) dão o acento. Recheada por uma tecladeira oitentista radiofônica, “Cheli” é um dois pra lá dois pra cá regado pelo chiado da simulação de maracas num Yamaha. Resumo de muito daquilo que era vendido nos piratões de Casa Amarela – bairro popular de Recife –, onde a salsa de Célia Cruz convivia com Agnaldo Timóteo num mesmo fluxo, “Cheli” é música de salão. Nela, há uma relação direta entre o que se escuta com a maneira com que se dança. Pra captar qualé a do som é preciso sentir o cheiro, o suor e o corpo daquele ou daquela com quem se baila – é preciso “chambregar”, como ainda se diz aqui. Tudo aquilo que eu não aprendi, frustração de criança.

Cidade patusca, Recife é feita de música a toda hora. Até por isso, já foi considerada uma das cidades com maior poluição sonora do Brasil – olha, já vi em algum canto que essa poluição era na real uma das maiores do mundo, mas não encontrei nenhuma referência na internet, daí só sobra a megalomania em linha reta da minha memória de nativo, fica o dito pelo não dito. Andar por Recife é ter música sem parar nos ouvidos. Bem, isso era um pouco mais forte antes da pandemia, até porque tudo ficou menos intenso, muita gente morrendo, falta de grana, galera mais em casa, é inevitável que as ruas fiquem um pouco mais vazias, mas não totalmente – é, seria ideal que fosse totalmente, só que fazer o quê? As coisas não estão mais as mesmas, não dá pra estarem. Bem, de qualquer modo, a rua ainda é o espaço do frege e do som alto.

Andando pela cidade você escuta, hoje, muito brega-funk, é verdade. Mas ao andar pela periferia, aqui acolá a gente se depara com um coroa ouvindo uma cúmbia, um merengue etc. Nunca entendi muito como isso se deu, donde isso nasceu etc, mas é bem comum ouvir ritmos do restante da América Latina nos morros e comunidades de Recife. Domingão, música da porta pra rua, sempre alta, pessoal conversando na frente de casa, às vezes uma bebida com um tiragosto, alto-astral.

O Conde é em parte resultado dos hábitos auditivos locais, em que autores como, tipo, um Evaldo Braga, cantor romântico do qual ele já se declarou fã, são reverenciados. E para além, “Cheli” possui, assim como várias músicas latinas, aquele chiadinho no tweeter das caixas de som evocando o pé que arrasta no chão enquanto se arrasta o parceiro ou a parceira nos limites da pista. No meio de tudo, o vozeirão do Conde é todo dengo e angústia, “é muita letra!” e sofrência. E por cima, vai e vem o som dos metais temperando, mais parece que tão te empurrando pra sair dali da quininha do salão, enchendo de endorfina, ensolarando o rosto em um sorriso aberto e fácil. Eu… no cantinho… querendo dançar, sem conseguir, empulhado porque fico receoso de pisar no pé da moça, toda vez que me meto a fazer isso sempre piso, frustrado mas alegre, como na época em que ia prum fliperama ver os outros jogarem, mas sem nenhuma vontade de fazer o mesmo pra não levar um “Adugue!” de Ryu do Street Fighter, pirando nos outros guris fazendo arrelia com os bonequinhos. Tonto de felicidade, me vejo chamando por Cheli na cabeça, e ali, ao longo desta festa imaginária, aquela moça na minha frente mas que eu nunca vou conhecer porque não consigo dançar juntinho. Poxa, como ela é bonita, deve ser massa puxar pra lá puxar pra cá sentir o cabelo dela bater na minha cara aglomerando com todo mundo fazendo o mesmo (antes da pandemia), mesmo que não rolasse nada demais, a gente ao menos teria um primeiro contato, eu ia sair do flerte – ia, né? –, ei, aquele outro figura teve… “coragem”, putz, ele sabe dançar bem, putz, sou um merda, vey… E o Conde chamando por Cheli, muito bem, poeta, obrigado por me acompanhar na assistência, trazer nessa noite de solidão essa companhia, vaga e etérea mas companhia…

Terminou tudo, voltei sozinho, meio bêbo, feliz pela noitada (hipotética mas típica), como foi bonito, gosto amargo de Teatchers com água de coco, acho que em algum momento de amanhã vou vomitar, será?, capotei…

“…sem você não sei viver, Cheli, meu amor, meu bem-querer, Cheli!”

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

“Desvendando o Caribe no Pará”, por Bernardo Faria [Site BregaPop] | Banda Kitara, “Dizem que Sou Louca” | Thalia, “Loca” | Musa do Calypso, “Baby Fala pra Mim” | Carla Bruni, “Quelqu’un M’a Dit” | “Música brega: uma breve história (para ler e ouvir)” [Site Cidadão Cultura] | Sedutora | Celia Cruz | Agnaldo Timóteo | “Pesquisa traça o mapa dos bairros mais e menos barulhentos do Recife”, por Ciara Carvalho [Jornal do Commercio] | “Hit Contagiante – Felipe Original feat. Kevin O Chris | FitDance TV (Coreografia Oficial)” [YouTube] | Evaldo Braga | “Variaciones de maraca de cumbia colombiana” [YouTube]“Hadouken!!! Street Fighter 2 Black Belt Ryu” [YouTube] | “Clube da Sudene: Banda Labaredas” [YouTube] |

 

Conde do Brega, “Cheli”. É fácil (e é fácil mesmo).
Aroldo SóSucesso!

Falar de música popular procurando objetividade quando se é mais um amante (ou amador, cuja etimologia e significado atual também têm a ver com “amor”) do que um teórico sistemático pode dar uma dor de cabeça enorme. Porque a gente carrega uma paixão que tende a interferir em nossa percepção de áreas cinzentas, de reconhecer qualidades em território inexplorado ou distante do coração.

O amante/amador tem que se vigiar porque tende à apologia do que se cristaliza como objeto de amor, e ao desprezo, que pode virar ódio, do que lhe soa vulgar e eventualmente vil. É óbvio que estou falando de e por mim, mas, por convivência e observação, conheço o tipo. A força nefasta da polarização que já se dá na origem, ou seja, quase como essência, do universo da música pop, que nasceu/cresce parcialmente sobre uma estrutura mercadológica (não à toa a artificialidade é uma ameaça constante), precisa ser desconstruída o tempo todo por uma modulação do coração: há que se abrir ao novo, mas também de entender que o que não bate às vezes não é para bater mesmo, porque simplesmente não se casa com nossa sensibilidade, e, mesmo assim, conseguir compreender seu lugar no mundo. É necessário mirar-se no musicólogo que busca objetividade, mas também e principalmente se dar conta de que a objetividade tem limite. É isso que permite não gostar de trap mas reconhecer o fenômeno estético e tratá-lo com respeito onde o respeito for devido (e eu sei que essa última sentença foi construída de modo tautológico, esse é um preço da subjetividade).

Mas, veja também, existe algo objetivamente podre em certas coisas, e isso também tem de ser admitido. Um exemplo é certa música sertaneja contemporânea que é fruto de uma violência social que se retroalimenta de perversão estética. Uma música que se assume mesquinha, sem vergonha de dizê-lo, mesmo que com outros nomes. Ser um disseminador não só da mediocridade, mas também de uma mentalidade bovina e predatória ao mesmo tempo, é a condição que permite a alguém como Wesley Safadão ser alçado ao sucesso comercial.

O Conde do Brega também é problemático, mas há coisas que o redimem. Há algo de nobre em sua música. Há algo de orgânico, legítimo, em como essa música e seus agentes interagem com o público. “Cheli” é sobre uma mulher desejada e só, ok; a letra não reverbera para nada além de Cheli, o objeto de paixão do eu lírico da canção, mas quem pode assegurar que uma lágrima sentida já não caiu sob o efeito de ouvir “Cheli”? Essa consideração sobre a carga emocional da música do Conde é subjetiva, claro, mas há uma intenção de querer expressar algo íntimo, enquanto que a música de Safadão, como comparação, é tão pré-pronta que se emocionar com ela beira uma parafilia. É preciso, enfim, ir além da ojeriza cristalizada a que, no meio de “Cheli”, haja um recurso promocional que consiste em uma voz anunciando o nome do artista, para um estado de contemplação que, quem sabe?, permita que se ache até graça (com alguma condescendência, claro, mas no bojo essa risada ao que se considera absurdo também se redime um pouco de seu crime porque também pode ser empática). Para quem, como eu, presenciou bailões em um clube do Recife e se irritou em trabalhar sob certas circunstâncias sonoras, mas também riu e viu bêbados se abraçando e se beijando ao som de um repertório com função pré-definida, em sequências literalmente previsíveis (mas não mais que numa festa gótica) compostas de bregas ortodoxos/antigos/clássicos, Tim Maia, ABBA, soft rock, cumbias e outros ritmos latino-americanos (e etc.), pode-se dizer “isso não é pra mim” sem incorrer em ódio pedante e, logo, até bater o pezinho com algum tipo de apreço instintivo (que pode virar afeição a longo prazo), sem ruminar sobre os detalhes formais que incomodam às vezes por razões mais irracionais do que se gostaria de admitir.

De resto, “Cheli” tem méritos menos óbvios. É possível sentir isso (ou “perceber”, mas amantes precisam desconfiar sempre da própria objetividade, independentemente da configuração entre gosto e objeto em cada caso) na atmosfera quase épica em que a história vaga sobre a idolatria romântica de uma figura feminina se dá. O Conde se limita a pouquíssimas palavras, insistindo apenas que pensa em/ama Cheli, sobre um instrumental lânguido, dançante mas morno (não pejorativamente), que convida tanto à dança quanto a ficar prostrado em reminiscências românticas ao redor da pista enquanto se beberica algo. Perfeitamente digna qualquer situação.

Então, voltando um pouco: primeiro, o apaixonado consciente de suas limitações inerentes talvez se revolte tanto com o que lhe soa vil ou vulgar ou medíocre, porque o nada, o que não causa qualquer comoção, também é potencialmente vil para ele quando não se enxergam as áreas estéticas cinzentas. Até que, num segundo momento, as fichas começam a cair. No mundo de quem ouve Conde regularmente, ou até melhor, religiosamente (porque música é um tipo de religião), existe uma introspecção extrovertida. O contexto original é gregário, mas toda audição continuada de qualquer coisa tem uma surpresa em potencial (inclusive ódio redobrado, vide sertanejo de direita). Se se pode acusar a ideia de não dever a nada a ninguém e portanto supostamente ser livre para o prazer sem culpa de oferecer escapismo que não altera substancialmente o sufoco do cotidiano de deveres e penas, também pode-se dizer que, NO MOMENTO em que se ouve Conde advogar o hedonismo, DE FATO nos inebriamos e não devemos nada a ninguém, o que é desculpa suficiente para Conde e para nós. A gente merece isso. A gente merece acreditar em amores com lindos homens e mulheres, mesmo que não passem de cinco minutos, como as outras gentes merecem (porque sim!) seus refúgios de preferência, já que a segunda-feira ou coisa que o valha sempre vem.

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Desiigner, “Panda” [Matéria deste imaculado blog] | Paulo Sérgio, “Não Creio em Mais Nada” | Tim Maia | ABBA | Bonnie Tyler, “Total Eclipse of the Heart” |

 

>FICHA TÉCNICA:

Versão original: “Ilyne”, de Gordon Henderson e Julie Mourillon, da banda Exile One.

“Cheli”: Versão do Conde para “Ilyne”, da Exile One.
Music Publisher: R. D.

Estúdios Somax (Recife/PE, Brasil).

Desiigner, “Panda” [EUA, 2016].

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Atenção: abaixo segue três textos diferentes escritos cada um por um autor diferente.

 

É fácil, mas é difícil.
Aroldo SóSucesso!

Pra quem vem de um background muito diferente, o apelo dessa música é provavelmente um enigma, tanto mais conforme se descobre sua imensa popularidade e o fato de que “Panda” foi alçada à primeira posição da lista Hot 100 da Billboard. Mesmo tendo a ajuda de Kanye West, que a usou na faixa “Pt. 2”, isso é um feito, até porque a música de Kanye não chegou nem perto do sucesso da de Desiigner.

“Panda” é algo como uma representante típica da trap music, mesmo sendo quase impossível falar numa tipologia bem definida em circuitos musicais que se interligam o tempo todo. E ainda que Desiigner seja de Nova Iorque, a cena trap é tão associada ao sul estadunidense, e à cidade de Atlanta em especial, que aparentemente o artista se viu forçado a contar pelo menos uma mentira escabrosa (ou fez uso de licença poética, a depender da perspectiva) quando ele diz que tá cheio das “broads” (algo como “gatas”) em Atlanta, cidade que ele nunca havia visitado quando fez a música. O resto da letra e sua execução parecem seguir uma cartilha de como escrever e entoar um rap nesse estilo: as sentenças são elípticas, mas não metafóricas. Não há jogos de palavras, mas gíria pesada, o que, junto à entoação enrolada, dificulta a compreensão do ouvinte (mesmo dos gringos). Essas aparentes fraquezas em letras e flow são também sua força: o discurso aqui é direto e curto e tem a ver com o imaginário que o artista quer projetar para sua própria persona, inclusive a privada. Muitas vezes, no trap, fala-se de uma origem real e muitas vezes o trapper se concebe como já fora dos perrengues do crime, mas as histórias que se deixam entrever têm sempre essa sombra de contravenção, mesmo que apenas como origem. Esse tipo de letra, inclusive, é condição para uma música ser considerada trap music autêntica. Outras características são a ostentação de consumo, sexo e poder.

Agora, o que temos em “Panda” é talvez um dos modos mais formulaicos do gênero (pelo menos, do modo como ele vem sendo entendido nos últimos dez anos; e, na real, as raízes de tudo já têm quase três décadas): o jeito enrolado de entoar, o flow linear, monótono. Instrumentalmente, há muito e, ao mesmo tempo, quase nada acontecendo. As batidas, os efeitos percussivos, tudo o que não é a voz, têm síncope e se expandem, e um piano de filme de terror (me lembrei de John Carpenter, que sabia tão bem como a simplicidade, a repetição e as notas certas podem criar tensão) é acompanhado por pequenas explosões de ficção científica, algo que, na música, lembra o que o CGI é pro cinema (e não há ironia nem julgamento de valor aqui; efeitos especiais sempre tiveram seu lugar no cinema). “Panda” soa luxuriante e, no entanto, plano, porque as texturas não mudam. E isso não é necessariamente ruim. E mais: isso tem uma função. Se não tivesse, como explicar sua popularidade? Tudo isso não só certamente funciona maravilhosamente em certos contextos, como, por exemplo, de trilha sonora bombástica para escapar pelas ruas com amigos dentro de um carro, como é a cara de uma parcela enorme de uma geração. Quando se diz que não se entende essa música, o que se quer realmente dizer é admitir disfarçadamente que não se têm os meios de entender sua atmosfera social, uma vez que música não nasce num vácuo. E a disparidade de percepções sobre o trap é tão pronunciada que gêneros mais recentes e mais formalmente experimentais como o uso de inteligência artificial como parte do processo composicional (caso de Caterina Barbieri) e a PC Music (que exagera certas características do pop mais acessível até que, pela via do absurdo, o que é palatável se torne de difícil digestão, o que a escocesa Sophie tem feito muito bem) possivelmente soam mais aceitáveis, ainda que ouvi-los seja outra história, porque podem soar esdrúxulos aos ouvidos mais conservadores, mas ainda têm um verniz conceitual que a velha guarda da crítica talvez ache mais digno. Um ponto da questão é que o que atordoa os críticos não são os meandros estilísticos de um gênero que, a bem da verdade, se caracteriza pela simplicidade, mas mero elitismo que se recusa a aceitar parâmetros tão diretos de como fazer música que, muitas vezes, rejeitam a necessidade de qualquer conhecimento teórico musical a priori.

Não há muito com o que ficar perplexo, inclusive, se pensarmos na velha história da música pop como projeção e fantasia de um caminho rápido de ascensão social e de fama sonhada no isolamento do quarto de dormir: há tempos, as pessoas têm nutrido esperança de tornar-se seus ídolos, mas o caminho muitas vezes é proibitivo. Agora, não apenas em termos de instrumentos e de conhecimento musical (apesar de que o Faça-Você-Mesmo seja algo já antigo na música pop), mas também em relação aos canais de divulgação, a promessa de se alçar também ao pódio, mesmo que continue obviamente evasiva e essencialmente ilusória, parece se tornar mais à mão. E, só entre nós, ninguém realmente precisa traficar drogas pra fazer trap.

O maior problema pra quem está de fora do trap é a linearidade cansativa. Desiigner é acusado, e com razão, de ser uma cópia do rapper Future. Acusado não exatamente de plagiar, mas de adotar os maneirismos vocais e os temas. Esse problema de imitação estilística não é recente no hip-hop, mas o trap aprofunda o problema com a proliferação de batidas, efeitos, linhas instrumentais pré-fabricadas e que naturalmente tornam o panorama do gênero monocromático.

A sorte é que Desiigner e Future são só um aspecto da trap music. Mesmo que não se goste duma ou de outra característica, o gênero, em suas formas mais tradicionais ou principalmente através de hibridismos, tomou conta das paradas, foi parar em coisas bem mainstream como Beyoncé. E a EDM Trap (ou crunk, mas sério, quem realmente entende esses rótulos?) “Turn down for what?” mostra que a instrumentação original, quando fornecida de um gancho, pode virar uma delicinha.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Kanye West, “Pt. 2” | John Carpenter, “Halloween” [tema do filme]CGI [“Imagens Geradas por Computador”, Wikipédia] | Caterina Barbieri | Nicolle Cabral, “O que é PC Music e como ela tem se infiltrado no pop, de Sophie a Charli XCX” [Rolling Stone, 2020] | Sophie | Future | Beyoncé | DJ Snake, Lil Jon, “Turn Down for What” |

 

Panda pandemia: a armadilha virtual de Desiigner.
George SóSucesso Yeah!

Imagine-se você em Recife, 2020. Ônibus lotado. Em plena pandemia, sendo obrigado a ir a um trabalho pelo qual não tem a menor simpatia. Você sabe que está arriscando a vida para o sagrado lucro do patrão e mesmo que sobreviva a mais esse dia, amanhã você terá outro e depois outro, e de vez em quando, uma folga aleatória a cada seis trabalhados num maldito McDonald’s da vida ou coisa similar. Com apenas 18 anos, você se pergunta se isso é tudo que o futuro lhe reserva, enquanto olha pela janela e percebe que, nesse exato momento, imprensado pelo ônibus, mais um entregador de IFood, provavelmente da sua idade, acaba de se acidentar. Em seus headfones um estranho mantra ecoa o ódio em sua cabeça: “panda, panda, panda”. E nesse momento, você percebe que, pra você, o trap é a única coisa que pode lhe salvar de morrer imprensado, seja fora ou dentro de um ônibus.

Em 2016, quando tinha também apenas 18 anos, o rapper de Nova York, Desiigner, lançou o seu até agora hit de maior sucesso: “Panda”. Seguindo os ensinamentos de seu produtor Kanye West e de sua maior influência artística, o DJ de Atlanta, Future, o artista já despontou na “crista da onda”, “Panda” se tornando um dos maiores hits daquele ano e confirmando a transformação do trap de um subgênero ligado ao underground do rap sulista de Atlanta, EUA, em uma das vertentes mais lucrativas do hip-hop da atualidade. Para além do sucesso de público, em um artigo para a revista The Face, o critico Simon Reynolds chegou a definir o trap feito por Future, T.I. e Migos, em suas origens marginais com a de dois outros gêneros da música negra sulista: o jazz e o blues.

Diferente do hip-hop tradicional com suas cadências tonais e beats gordurosos, o trap baseia-se em padrões rítmicos gerados por TRs 808s (bateria eletrônica) que se repete num vácuo preenchido apenas por lampejos melódicos semidecorativos de sintetizadores, que servem de cama para o flow ultrasincopado do MC. O inovador uso do autotunes transformou a ferramenta de estúdio, utilizada para fazer overdubs e outras artimanhas, em um verdadeiro instrumento, como em outros tempos um jovem Kurtis Mantronik revolucionou o hip-hop a partir de suas experiências com vocoders e um Roland TR-808 criando as bases para o jungle (na faixa “King of the Beats”) e para o próprio trap (na faixa “Bassline”).

Assim como no grime e no drill, o trap lida com o mínimo de elementos musicais para empreender o máximo de tensão no ouvinte, seus baixos subsônicos e seus chimbais (hit-hats) persistentemente repetitivos criam um clima pós apocalíptico sonoro que casa perfeitamente com uma lírica que parece saída do universo de GTA (“Grand Theft Auto”, videogame em que o jogador vive o papel de um gangster), mas que infelizmente sabemos ser muitas vezes reflexos do cotidiano de drogas e violência tirados da realidade das ruas das periferias.

Construída a partir de uma melodia comprada por U$ 200,00 na internet, “Panda”, ao receber o apoio dos megatubarões do hip-hop como Kanye West, se torna símbolo do esforço em moldar e controlar não só o mercado mas a própria natureza de que esse se alimenta: as subculturas undergrounds disruptivas. No entanto, essa tentativa de manipular o futuro acabou por ajudar a ressignificar o próprio imaginário trapper, até esse ponto calcado na narrativa de testemunho, seja da vida criminal, seja do sucesso de suas estrelas. Ao construir um simulacro do universo trapper de Atlanta, a começar pelo título, uma gíria para o modelo esportivo de luxo da BMW X6, passando pelas referência ao “lean” (coquetel de codeína e álcool comum na cena trap de Atlanta) e a crimes financeiros (T.I., um dos fundadores do trap, foi acusado por fraudes com bitcoins), sem nunca ter pisado lá, Desiigner acaba por construir a “mais perfeita simulação” desse universo ultraviolence GTA que lhe serviu de inspiração, como também se torna responsável por criar algo único em toda cena do trap até aquele momento, a figura do narrador não-confiável, que o transformará no grande responsável pela explosão de trapstars adolescentes de classe média, e em certa medida, em transformar o trap no maior fenômeno musical da atualidade.

Depois de se consolidar como hegemonia, o hip-hop começa a fugir de suas próprias disputas internas e a explorar suas possibilidades como vanguarda da música pop ao aproximar-se de gêneros como a EDM, utilizando-se de batidas cada vez mais espaçadas, floreados soturnos e climões. O trap vem trazer para o universo da música pop o som de subculturas sem rosto, e com cenas cada vez mais próximas do lema punk do “faça você mesmo”: assim como no grime ou no funk proibidão, dispensa grandes estúdios para se produzir e a distribuição passa por circuitos de shows e canais de divulgação que não necessariamente fazem parte do contexto das grandes gravadoras. Esta liberdade irá trazer em conjunto toda uma inovação nos temas, ultrapassando certas fronteiras líricas que o selo PMRC da RIAA faz questão de demarcar. Uma outra face da música negra entrevista antes nas histórias de crime e violência dos subúrbios californianas e londrinas de cronistas como Easy-e, do N.W.A., e no grime de Dizzee Rascall: a voz e os beats de uma juventude marginalizada pelo racismo e exclusão social, que encontrariam no universo digital uma forma de reação a partir da crônica de suas experiências de vida envoltas por sonhos, violência, drogas, diversão e frustração. Essas narrativas, ao contrário de darem início a uma revolução racial, unindo política à estética como sonhou o Public Enemy, buscam na música uma saída pelo lado individual mais do que pelo coletivo. Cada dia, cada música, cada história, é o testemunho de uma lida para sobreviver contra tudo e contra todos: violência do Estado, violência do tráfico e do preconceito do cotidiano. Diante disto, existir é já uma vingança .

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Kanye WestFutureSimon Reynolds, “Trap world: how the 808 beat dominated contemporary music” [The Face, artigo, 2019] | T.I. | Migos | Roland TR 808 | Mantronix, “King of the Beats” | Mantronix, “Bassline” | Narrador Não-Confiável | “Faça Você Mesmo”, lema punk [Wikipédia] | Parents Music Resource Center [Wikipédia] | RIAA [Wikipédia] | N.W.A. | Dizzee Rascall |

 

Desiigner, “Panda”, e o trap vistos por um roqueiro das antiga.
Mateus SóSucesso!

É um lance engraçado: não adianta, por mais que eu tenha contato e vá atrás, trap num geral soa pra mim como pra Snoop Dogg num vídeo em que ele avacalha o flow do gênero, num esculacho old school. Em tempo: flow é o jeito de cantar próprio do rap – gênero donde se derivou o trap –, o jeito com que se brinca com as sílabas, com o tempo da fala, com o modo com que a palavra é dita etc, o jeito de cantar quase falado, algo como o que, num paralelo torto, Moreira da Silva fez com o samba, criando o “de breque”, em que partes meio cantadas se intercalavam com outras completamente faladas – por isso o “breque”. Mas aí é outra história – em que também entraria o repente do NE.

De modos que – voltando – Desiigner é o único no trap que realmente prende minha atenção. Ou melhor, nem Desiigner como um todo: só essa faixa, “Panda”. Já fui atrás de gente famosa no gênero como Travis Scott, Post Malone, Future etc, ou do mainstream brasileiro como Matuê, MC Igu, DFideliz, Haikaiss (que flerta com o gênero) e uma pá de outros que aqui acolá tão no Flow Podcast. Mas não adianta, não desce, trap não me desce. Só “Panda”, “Panda”, “Panda”… [Aconselho que saia daqui e vá lá escutar a faixa].

Eu poderia afirmar o mesmo que Ronald Rios – num dos episódios sobre Eminem do Music Thunder Vision, aos 03:23 –, de que ao ouvir a maioria dos rappers atuais tenho a impressão de estar ouvindo o mesmo flow, como o próprio Snoop Dogg deixa entender no vídeo que cito. Olha, realmente parece tudo pra mim um mesmo flow com pequenas variações. Na verdade, me parece que o trap realiza mudanças mais substanciais nos arranjos, nos penduricalhos que colocam ao redor do vocal e do beat (talvez uma das grandes marcas do estilo, um beat denso, de bumbo cheio, “gordo”, em suspensão constante + a simulação de um chimbal artificial que toca feito mosquitinho durante toda música). Pegando esse gancho, o trap é como se fosse, mal comparando, aquelas árvores de Natal feitas em série pra serem vendidas em supermercado e que a gente enfeita pra dedéo quando chega em casa, será que me faço entender? Em suma, o gênero tem algo de formulaico pros ouvidos do tio aqui – especialmente o povo do mainstream, sublinho. Só que é o sujo falando do mal lavado, eu que escutei ao longo da vida um amontoado de bandas punks, gênero que trabalha com a penúria musical extrema. Enfim, o punk também parece limitado (reforço: parece), e um tanto parecido um com o outro (reforço: parecido). Portanto, quem sou eu pra falar de um gênero que a molecada tá curtindo? Deixa, tio.

Mas o que tem em “Panda” que sonoramente sobressair-se-ia (alô, Temer!) diante do trap num geral? Logo uma faixa de um cara que é empurrado pro rodapé por ser acusado, por uma galera, de plagiar o trapper Future… Ou seja, o que haveria na “criatura” que pra mim supera, nesse trampo, o “criador”?

Aqui, só lembro de um brother que ao sacar a faixa, alvoroçou-se: “Tava com uma raiva da porra, trabalho ônibus a porra toda, daí quando começou a tocar me senti vingado”. O som soa exatamente isso: vingança. Mas do quê? Ér, bem, Desiigner na letra fala de tráfico, crime, pega de carro etc, a vida dura, sem glamour, ou com um glamour troncho e ao contrário, tudo casadinho com as imagens do clipe. Um parênteses rápido: falar de música sem a imagem que a acompanha é praticamente não falar dela atualmente, e só um purista fora da realidade pode fazer essa separação. Ouvir música é, hoje, assistir música. Como ler música sempre foi “ouvir literatura” – especialmente a música popular. E sinceramente não sei se tem volta. Não é bem a minha, mas é isso.

“Panda” vai com gosto de sangue. Tem um gravão em toda ela que soa como uma lapada insistente na caixa dos peitos. A fala é incompreensível, mesmo pra quem sabe inglês. São frases soltas indo de canto algum pra lugar nenhum, tipo uma ambiência com um dialeto sendo abafado pelo grave dos bumbos digitais. Dá vontade de saltar da cadeira pra fazer alguma coisa que você não sabe bem o que é, dar um murro na vida, daí rebolar no mesmo compasso. Então brota uma sensação de fantasmas de mausoléu rodeando sua cabeça em meio a uma bad trip com cara de bunda. Seu destino é fazer do seu corpo muralha, você confuso, tropeçando nos obstáculos mas enfrentando com visão embotada, vontade de sair fora do trabalho e mandar o chefe praquele canto. Meio como uma hipnose que te deixa suspenso em meio a um pesadelo, desejo de cuspir, fechar os olhos, sair, se expurgar. Gira e gira, rebola… “Panda” canta o Purgatório, mas em voz envolvente, tal como a cobra que – no fundo no fundo – convenceu Adão a comer a maçã. Danação, mas uma danação gostosa, como a própria maçã que deveria ser bem gostosa também, ou bem envernizada pela Natureza, pra que Adão ficasse tão tentado a comer ela. Leso. Junto com tudo o que disse, “Panda” deixa a gente meio leso e um tanto instigado ao ouvi-la.

Nos enfins deixo aqui algumas pratas da casa, gente de PE, como indicação: quem não conhece ainda, procura as faixas “Acelere ou Pare”, de Don Erre, e “Gangsta do Brega”, de Hoodbob Loko. Essa galera aí fez ou tá fazendo algo seu, “Acelere ou Pare” há anos não para nos caixas aqui de casa, e “Gangsta do Brega” põe brega-funk no trap como poucos. Faixas interessantes que, como é comum à história do hip-hop, cantam a existência, os dilemas, e as vielas da cidade de agora. Tal como fez o punk. E ainda faz.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Snoop Dogg [YouTube, vídeo tratando do trap] | Moreira da Silva | Caju e Castanha | Travis Scott  | Post Malone | Future | Matuê | MC Igu | DFideliz | Haikaiss | Ronald Rios, “Eminem, Parte 1” [Music Thunder Vision, aos 03min23s] | Snoop Dogg [YouTube, vídeo mais extenso sobre trap, em inglês] | Sérgio Rodrigues, “Formulaico, uma palavra bate à porta” [revista Veja, 2011] | “Português em Foco: A mesóclise de Temer” [TV Folha, YouTube)] | Don Erre, “Acelere ou Pare” | Hoodbob Loko, “Gangsta do Brega” |

 

>FICHA TÉCNICA:

Faixa composta por Sidney Selby III e Adnan Khan.

Selos: Def Jam Recordings, Getting Out Our Dreams .

Produção: Menace.

Listão Melhores SóSss!: Porque novidade é coisa velha!

Chegou o final do ano, e todo mundo desejando boas festas com a boca cheia de panetone. Bem, este é na realidade um cenário ideal numa propaganda de TV e YouTube. Que recessão do cacildis, talvez seja melhor retificar dizendo que está todo mundo desejando boas festas com a boca cheia, mas de ovo. E a porcaria do coronga atrapalhando as festas com a família. Enfim, infelicidade da Providência, talvez nem sobre muita coisa da frase que começou esse parágrafo… Bem, bora tentar novamente.

Pois bem: chegou o final do ano de 2020 e os sites de música todos lançando listas de melhores álbuns, compactos, faixas, letras, cabelos, maquiagem. Tem gente que diz que essas listas são estúpidas porque tentam medir qualidade artística com a régua do achismo e, pior ainda, são excludentes, seja de autores / gêneros (brega? “E isso existe?”, resmunga um editor), como de lugares (e a Romênia? “Onde fica?”, debocha o editor fictício). E também tem gente que passa o ano nem txuns pra esse faniquito novidadeiro da indústria, até que chega dezembro, daí lembra que também faz um blog de música e o sentimento de culpa vem de voadora com tudo: “Puta merda, esqueci de acompanhar os lançamentos, deixa eu ver aqui em duas horas nessas abas do Internet Explorer o que a Coisa e Tal e Seu Coisinha tão dizendo que foi topzera neste ano que tá escorrendo feito chorume no ralo”. Preguiça nossa? É real. Velhice? Com certeza. MAS, mesmo Inês estando morta, a gente resolveu fazer nossa lista de melhores, só que diferentona, porque a gente tem uma reputação a zelar, e é diferentão.

Na lista de melhores da SóSucesso!, não estão apenas os lançamentos do ano, aliás, só tem umas duas paradas lançadas em 2020. Ou seja, decidimos alargar o conceito de novidade, e listamos aqui NOSSAS novidades PESSOAIS, aquilo que tocou em nossas caixas e fones e corações ao longo do período e que a gente não conhecia. Álbuns e/ou artistas que fomos descobrindo enquanto o mundo afundava, com gente de tudo que é época e lugar.

Rolaram alguns critérios, óbvio: em cada lista, escolhemos dois discos desta década que termina e o restante é de álbuns de qualquer década mesmo. Essas obras nos surpreenderam e aqui compartilhamos a alegria (ér, desculpem, é o espírito do Senhor grassando) de tê-las encontrado. É bem possível que a gente faça resenhas delas num futuro breve. Aguarde e confirme.

Por fim, como não poderia ser diferente, a família SóSucesso! deseja ardorosamente um Feliz Natal e um Ano Novo sem Bozonazi para você e para todos nós, caríssimos leitores e leitoras!

 

>Listão Melhores, por Mateus SóSucesso!

Oneohtrix Point Never, Magic Oneohtrix Point Never (EUA, 2020): Magic Oneohtrix Point Never parece com uma fita K7 da década de 1980 encontrada depois de uma tremenda varreção naquele monturo empilhado há um tempão ali num canto da casa. O disco é um refugo de tudo que rolou em uma época, estágio de arte máximo de um autor que de uma forma ou de outra sempre teve como referencial o entulho midiático oitentista no trampo. Certamente um dos grandes álbuns do ano, Magic Oneohtrix Point Never consegue apontar o futuro mesmo com cara de passado, um passado que, de tão lapidado, se distancia completamente do original. Vanguarda conservadora? Talvez. Algo a se analisar numa crítica futura. Noves fora zero, melhor disco deste ano tocado aqui em casa, de longe.

Principleasure, / (EUA, 2019): Mesmo sendo comparado com Gesaffelstein pela influência EBM nítida dentro de uma eletrônica dançante super atual, ao meu ver a criatura (Principleasure) supera o criador – falo aqui comparando com o disco Aleph, de Gesaffelstein, talvez já clássico. Principleasure é a demonstração de meu erro no texto sobre Ancient Methods em que afirmo ser a EBM “aquele gênero que a naftalina derreteu e as baratas comeram”. Bem, a EBM, enquanto gênero, ainda continuo afirmando: sim, certamente as baratas roeram. Porém, é notável, o homoerotismo espartano em crise da EBM perdura ainda hoje no techno e em coisas como este disco de Principleasure. O álbum é uma rebolação quadrada, mas talvez o que chame atenção nele seja exatamente isso: você rebola. Que seja assim, rebolando em meio a um cenário Tron (o filme), rebolando meio sem jeito, mas rebolando. Grande disco. Ainda vou tocar numa festa. Tenho de tocar.

Luis Alberto Spinetta, Pelusón of Milk (ARG, 1991): Como pode um disco tão simples ser tão desafiador? O rock argentino foi uma das minhas maiores descobertas neste ano que termina, e certamente Spinetta foi a figura mais encantadora que conheci de toda a cena. Este disco de 1991, já tardio na carreira do argentino, ao meu ver estaria lado a lado de um Singin’ Alone, de Arnaldo Baptista, um disco cru, rock, mas harmonicamente incomum dentro do gênero, fora da curva. Ao contrário do que aconteceu no Brasil, a vanguarda da música argentina reforçou seu amor pela simplicidade extemporânea. Pelusón of Milk é uma enormidade que, prevejo, muito provavelmente me acompanhará ao longo da vida. Como não te conhecia antes, meu velho? Obrigado, internet!

Serú Girán, La Grasa de Las Capitales (ARG, 1979): Outra enormidade do rock argentino, esse álbum de Serú Girán seria o que no Brasil se taxaria de influência Beatles (como rolou com Milton e o Som Imaginário), só que na real é prog às últimas, com aquela dose extrema de Yes. Porém, La Grasa de Las Capitales aponta pra uma forte particularidade melódica poucas vezes vista, distanciando-o do exibicionismo técnico de alguns do rock progressivo. Outro grande disco argentino de um cara sobre o qual sempre tive notícia de suas credenciais (Charly García), mas que nunca tive o prazer de ter entrado em contato antes – novamente a internet facilitando, a parte boa e ainda permitida pelo Vale do Silício e a RIAA, essas desgraças. Em Quebra Tudo: A História do Rock na América Latina (filme da Netflix que todos os curiosos e neófitos deveriam ver), chegam a chamar a atenção para o elemento tango presente em Serú Girán. Apenas declaro: não sei, não vi. Mas também, pudera, não sou argentino, né? La Grasa de Las Capitales é rock argentino na alta.

Ghédalia Tazartès, Diasporas (FRA, 1979): Este é um álbum que já me fez chorar um monte em 2020. Um transe. Pegando o gancho da moda, seria um encontro decolonial com culturas fora do “Ocidente”? Um disco todo feito de dissonância, mas que não deixa de transparecer um forte romantismo e impressão inflamada com/sobre o “Outro”. Beleza ruidosa, exegese da alteridade, liberdade envolta na margem, Diasporas é um disco pra se ouvir e reouvir enquanto se manda um foda-se [para o imperialismo?] catártico por dentro. Disco de um francês em explícito choque cultural. Contraface musical ao cinema de Jean Rouch. Um disco chocante.

 

>Listão Melhores, por Aroldo SóSucesso!

Tantão e os Fitas, Drama (BRA, 2019): Fragmentado, mas concentrado o suficiente para agarrar os ouvidos. Raivoso/experimental/dolorido/lúdico, música industrial com influência hip-hop (e vice-versa) e que foge dos clichês dos dois gêneros. E também não é uma coisa nem a outra. Melhor ouvir pra entender.

Silent Servant, Negative Fascination (EUA, 2012): Um techno lento (?!), difícil de engatar na pista, mas uma raridade no mundo clubber dos últimos dez anos de artista que incorporou a liberdade criativa da primeira leva de artistas industriais. Deve funcionar bem como trilha sonora para sessões BDSM.

Fever Ray, Fever Ray (SWE, 2009): A voz de Karin é feita de angústia e de libertação e talvez seja o instrumento mais forte do álbum. Depois que os sons engrenam na cabeça, o hermetismo inicial se transforma num amigo em quem confiar, disposto a reverberar nossas tristezas e desejos.

Lush, Spooky (GBR, 1992): O que parecia uma banda genérica shoegaze revela-se um som imersivo, romântico, sutil, melancólico e uma delícia de pop chicletudo, e geralmente tudo ao mesmo tempo.

Dusty Springfield, Dusty in Memphis (GBR, 1969): Figura exagerada, proto-diva pop, insegura e humana. Sua voz dava alma a tudo o que gravava. Aqui, o lado soul music de Dusty aparece com força.

 

>Listão Melhores, por George SóSucesso Yeah!

Thee Oh Sees, Protean Threat (EUA, 2020): Com duas décadas de estrada, inúmeras mudanças de formação, nome e estilo, esse disco lançado em 2020 demonstra que não só de violência por acidente e encontros sonoros inusitados vive a banda garageira de Orange County, Califórnia, uma das mais promissoras herdeiras da arte de fazer prog/kraut para as novas gerações.

The Minneapollis Uranium Club Band, Two Things at Once (EUA, 2019): Como assim indierock underground na década de 10 do século 21? Como assim Brian Eno, Wire e Devo numa banda só ? Apesar de um certo tom retrô, o rock radioativo do Uranium Club cativa pelas pernas e pelo humor ácido. Sua música é feita de chutes e sustos.

Milford Graves, Bäbi (EUA, 1977): Free Jazz!? Jazzcore? Ou simplesmente a coisa mais absurdamente livre que você já ouviu? Em Bäbi, disco gravado ao vivo com Arthur Doyle e Hugh Glover nos sopros, o baterista e percussionista Milford Graves recebe, cruza e cabeceia para John Zorn fazer o gol de rebote 20 anos depois.

Várias, Fly Girls! B-Boys Beware: Revenge Of The Super Female Rappers (EUA, 2009): O hip-hop sempre foi acusado de ser misógino e machista em suas letras e na postura macho alfa de alguns rappers. A existência dessa coletânea, além de provar que isso é apenas parte da história, demonstra que tudo, na verdade, passa por uma questão de visibilidade.

Model 500, No UFOs/Future – compacto (EUA, 1985): Pseudônimo utilizado pelo pioneiro do techno de Detroit, Juan Atkins, também conhecido como Infiniti e membro fundador do Belleville Three e do Cybotron , Model 500 é a face mais pop da dance music futurista da motorcity e o mais próximo do que o techno sempre quis ser: inclusivo, divertido e transgressor.

SóSss! & Rádio Raio – SP: Papo, música e delírio!

 

A SóSucesso! através desta entrevista para a Rádio Raio (um programa da rádio web Antena Zero, de São Paulo) inaugura neste vetusto blog uma seção dedicada ao formato áudio. O programa foi veiculado no dia 02 deste mês (dezembro).

Nesta conversa, discutimos um pouco acerca de nossa perspectiva sobre a música, a existência, e de quebra falamos do nosso trabalho e, lógico, de Recife/PE, nossa cidade.

Entendemos que o debate sobre o som deve se dar nos mais diversos âmbitos, e que o texto é apenas um dos muitos formatos, com suas vantagens e desvantagens. A conversa em tempo real, acreditamos, cria uma riqueza crítica diferente da dos textos e certamente chega mais rápido ao público.

Uma participação nossa em um programa de rádio é só uma das possibilidades do debate falado. Esperamos que muitos outros debates e trabalhos nossos neste formato venham a enriquecer esta seção.

Por fim, gostaríamos de reforçar nossa gratidão a Rádio Raio, que nos proporcionou  uma conversa divertida, leve e, sim, informativa. Esperamos que pra vocês seja tão legal quanto foi para nós participar deste momento. 🙂

[Para ser lançado ao programa, Clique na imagem do player ou aqui.]

 

>>Set list do programa [clique no amarelinho]:

[B.G. de fundo: Loose Joints, “Is it All Over My Face (Lerry Levan Remix)”.]

1- Test, “Você Fica Confidencial”.
2- Ancient Methods, “Knights and Bishops”.
3- Duma, “Lionsblood”.
4- Conde Só Brega, “Cheli”.

Jürgen Paape, “So Weit Wie Noch Nie” [GER, 2010].

[PRA OUVIR, CLIQUE AQUI.]

 

Atenção: abaixo segue três textos diferentes escritos cada um por um autor diferente.

 

Junger Paape e a geração Ícaro.
George SóSucesso Yeah!

Quando se fala de produção, a música eletrônica feita na Alemanha ainda é uma das mais relevantes dentro do cenário atual. Passados quase cinquenta anos desde o lançamento do primeiro disco do Kraftwerk, a cena eletrônica alemã ainda causa espanto não apenas pelo fenômeno de público de suas clubhouses mas também pela magnitude e capilaridade de sua produção. Não restam dúvidas, ao se falar de música eletrônica na atualidade, vira e mexe, corre-se o perigo de ser taxado de eurocêntrico, pois é praticamente impossível não se remeter a uma gravadora, um estilo ou artista advindo daquelas praias. Não é à toa que artistas como Brian Eno escolheram o país para produzirem seus discos mais limítrofes como a trilogia berlinense de David Bowie e o Zooropa do U2. Desde os primeiros experimentos da elektronische musik nos estúdios da rádio NDWR, na cidade de Colônia, que a Alemanha tornou-se um dos paraíso da tecnologia avançada de estúdios quando o tema é música eletrônica. Pra se ter uma ideia, em Berlim você encontra desde lojas de equipamentos musicais de cinco andares a um circuito sempiterno de festas, Djs e boates de segunda a domingo.

Obviamente, todo esse avanço tecnológico não é gratuito e decorre do estado de bem estar social implementado no pós-guerra, sendo o efeito visível do nefasto processo de reorganização geopolítica da colonialidade do poder que não só relegou ao segundo plano o processo de reconstrução nas ex-colônias africanas como fizeram o possível para reprimir suas lutas por independência. Fruto da aliança entre o capital privado internacional e a sobrevivente elite germânica, tal processo como disse Fassbinder em praticamente toda sua obra cinematográfica apenas disfarçou o autoritarismo explícito do antigo regime em uma nova forma de liberalismo econômico policial assentado nas mesmas estruturas de poder (empresas/bancos). Vale lembrar que uma das maiores fabricantes de armas do mundo, a Glock, é alemã, e que por mais que Berlim seja cheia de ciclovias, os automóveis alemães continuam a inundar as grandes cidades.

É deste cenário paradoxal de avanço e alienação tecnológica ballardiano, que surge o pop-house onírico Ibiza de Jungern Paape, um dos nomes por trás da Kompakt (gravadora situada na mesma Colônia da NDWR), e autor de um dos maiores anti-hits da música eletrônica dos anos 00 (ao menos na Austrália e na Itália): “So Weit Wie Noch Nie”.

Trilha sonora perfeita para um desfile de moda em Milão, um verão em Ibiza ou um passeio no barco do Aécio [Neves], “So Weit Wie Noch Nie” tem aquele miasma de música de abertura do programa do Amaury Jr., mas se formos olhar direitinho, apenas em sua superfície radiofônica. A fórmula está lá: vocais femininos, batidas tech-house, sintetizadores modo ventania no cabelo e até um teremim para ficar mais hipster. Mas há algo inquietante nessa calmaria. Uma desconexão entre passado e presente. Nas poucas resenhas que encontrei (Pitchfork, Resident Advisor, Actualites Eletroniques), as avaliações ficam entre 8 e 7 sobre a coletânea em que a música foi lançada (Total 2000, Kompakt), porém a música é tida como o exemplo de pop eletrônico perfeito, sem arestas, límpido como o lindo lago de amor de Gonzaguinha. Uma ilha de despreocupação no inferno de obrigações de nossa realidade. Como disse antes, a princípio parece ser um daqueles hits de verão fadados a morrer na praia, mas o próprio fato de estar escrevendo essa resenha prova que não o é.

Espécie de Thomas Pynchon ou J. D. Salinger dos botõezinhos, Paape nunca discotecou, deu entrevistas ou mesmo se apresentou publicamente. Isso nos faz refletir: quais seriam suas reais intenções com isso? Será uma renúncia ao hype que envolve a música eletrônica e uma declaração de que nesse meio o que menos importa é o artista e sim o produto final: a música? Diferente do KLF, sua recusa não une política a controvérsia (chuva de dólares, sangue de porco, confusão mental), nem também como Pynchon tem a necessidade de apagar seus rastros. O seu processo artesanal de produção (Paape é conhecido por ser um dos artistas menos prolíficos da música eletrônica) evidencia os seus propósitos de ser um anti-hype de sucesso apenas pela música. Um meio-termo entre a morte do artista proposta pela geração trance e o excedente de produção da música eletrônica dos 90 com sua afluência de novos estilos e subculturas.

A música perfeita segundo 90% dos comentários no YouTube (para todos aqueles que viveram o verão de 2002): polida, evocativa, letra inteligente, entre o ambient e o easy-listening. Um house lounge pop celestial, mas que pra mim, ainda cheira a programa de variedades matinal com direito a dancinha de Regina Duarte e tudo. Se em 2002 a música seria símbolo do despojamento de uma geração com computadores em casa e à mão, na qual me incluo, a qual entre suas principais preocupações estavam o hedonismo e um futuro cheio de maravilhas tecnológicas pela frente (Soulseek, Orkut, Facebook, internet à cabo) – ou seja, o YouTube como libertação do jugo da MTV –, hoje tudo isso parece uma grande piada sem graça. Envelhecemos e envelhecemos mal, esses bricabraques geracionais se transformaram em verdadeiras armas de destruição em massa e resultou na emergência de uma milícia política que despreza todo e qualquer exemplo de diversidade e minorias.

Hoje, a beleza nostálgica de “So Weit Wie Noch Nie” soa tétrica. O seu canto de liberdade eterna descompromissada traz à lembrança a memória de meus amigos mortos pelas drogas tragicamente e a absoluta impossibilidade de encontrar qualquer redenção. Como diz sua letra, nós transformamos “horas em anos”, “caçamos a monotonia”, porém ao voarmos “tão longe quanto nunca antes”, pagamos o inevitável preço da queda.

Dedicado a Gustavo, Neco e Walmirzinho.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

A lenda de Ícaro [Wikipédia] | Kraftwerk | Brian Eno | David Bowie | U2, Zooropa [Disco] | Elektronische Musik [Página da UFRGS] | “Aníbal Quijano e a crítica latino-americana à colonialidade do poder”, por Erick Kayser [Matéria do blog Racismo Ambiental] | Rainer Werner Fassbinder [Wikipédia] | “Novo livro de J. G. Ballard prevê um futuro sombrio” [Matéria, O Tempo] | “O falso eremita: Uma investigação sobre o escritor americano Thomas Pynchon, que nunca deu entrevista em 54 anos de carreira”, por Natália Portinari [Matéria, Piauí] | “Autor do mês: 5 curiosidades sobre J. D. Salinger, o recluso autor de Catcher in the Rye”, por Tiago Matos [Matéria, Revista Estante, da FNAC] | KLF [Wikipédia] |

 

Jürgen Paape, “So weit wie noch nie” – Entre o carnal e o etéreo.
Aroldo SóSucesso!

O que torna popular uma música é parcialmente imponderável. É fácil definir uma faixa de sucesso dizendo que ela é acessível, que gruda nos ouvidos, e é fácil identificar o que a torna atraente para o público assim que ela surge, mas achar os ingredientes e saber misturá-los é outra história. Há até fórmulas que ajudam a criar hits, mas é óbvio que elas não bastam. Ok, na escala industrial da RIAA, a ascensão de uma faixa às paradas de sucesso tem mais garantias, mas um chocolate com pouco cacau que vende muito porque a concorrência tem ainda menos cacau continua sendo uma bela bosta de chocolate.

Fuçando na Internet, encontram-se inúmeros casos de músicas cujo sucesso é menor que o dos mega-hits, mas que conquistaram o público usando um aparato de divulgação relativamente modesto. São esses os quitutes mais interessantes. Na maioria dos casos, eles estão exatamente onde deveriam estar, porque não fariam sucesso junto ao grande público nem com reza brava, já que fazem parte de círculos audiófilos pequenos. O que me interessa é o sucesso do que nasce num âmbito relativamente pequeno, porque, mesmo que não exista na música uma correlação intrínseca entre popularidade e qualidade, é daí que nascem as músicas brilhantes, as gemas. “24-track loop” não é necessariamente a melhor música do This Heat, mas é a mais acessível e, ao mesmo tempo, tão experimental quanto o resto do trabalho da banda, e é isso o que a diferencia. Os ouvintes de This Heat não estão procurando música fácil, mas ainda assim, como se percebe pela quantidade de acessos ao YouTube, ouvem mais “24-track loop” que as outras músicas. No meu caderninho de concepções pessoais, isso faz dela não só um hit, mas uma gema.

Claro que o gosto pessoal não interessa aqui. Amar jiló não o torna um hit, mas um cozinheiro que faça sucesso com um prato à base de jiló, o que é o contrário de apelar para o testado e aprovado, é talentoso. O mundo dos megahits é feito de pouca variedade e seu público-alvo é idealmente passivo. Já o mundo dos hits escondidos, bem, esse é um mundo populoso mas pouco povoado, uma Rússia musical. Nesse território, você encontra “So Weit Wie Noch Nie”, faixa de house music ambiente (ou tech house ou algo assim) do produtor Jürgen Paape, lançada em 2002. Paape tem um nome firmado no círculo EDM, tem uma gravadora, a Kompakt, e lançou várias outras faixas interessantes e de relativo sucesso, mas seu público é especializado. Algumas faixas usam o mesmo recurso de samples vocais isolados de canções das décadas de 60 e 70, mas não conseguem se elevar ao suflê de jiló delicioso de sua faixa mais conhecida. O que pode parecer um truque é, de fato, uma arte que jamais se domina completamente, que depende de sorte e intuição. Os samples vocais utilizados em “So Weit Wie Noch Nie” não são apenas de um contexto original muito diferente, mas são a peça central da faixa, ajudando a formar uma ambiência que não tem nada em comum com sua fonte.

Os samples que dão alma a “So Weit…” vêm da canção schlager “Vielleicht Schon Morgen”, da cantora israelense Dahlia Lavi. A canção original não é sequer uma das mais populares de Dahlia, e há um acompanhamento de violão que Paape espertamente retira. A canção de Dahlia é fraca, abruptamente muda o andamento para algo como um vaudeville, e eis que Paape percebe nela o jiló pra ser o ingrediente principal de uma iguaria fina. Samplear é uma arte, uma demonstração de que se pode fazer diferente, e não raro até melhor, através do uso de um pedaço de um trabalho prévio de outro artista. Samplear bem requer sensibilidade e demonstra uma das grandes ironias da música, em especial a pop, pela qual fica patente que ser o criador de algo não atesta competência e, portanto, não deveria conferir nenhum tipo de primazia sobre seu uso.
Há um sem-número de casos da música pop que ilustram isso e que inclusive levantam questões éticas e estéticas de que não tratarei aqui, mas que fique claro: plagiar é válido, a não ser que você seja rico e o plagiado seja pobre.

Mas enfim, em “So Weit…” , Paape cria algo acessível e denso de emoção. Em uma das páginas do YouTube, as pessoas comentam como ela traz memórias de tempos não vividos, uma nostalgia sem um objeto, pura contemplação de nada em especial e portanto prazerosa (um efeito comum em ouvintes de Boards of Canada, duo eletrônico cujo trabalho guarda similaridades com o que faz girar “So Weit…”). Há uma sensação de distância no tempo trazida por algum elemento musical difícil de identificar, que não se trata meramente de reconhecer vozes ou instrumentos antigos, mas que certamente passa por melancolia e languidez. A despeito de a faixa ser dançante, a impressão é de que ela flui lentamente.

Algo que explica muita coisa é que o estilo aqui é house (ou tech house, que seja): apesar de cair tão bem como fundo sonoro de academia de ginástica, a house tem uma versatilidade que permitiu que fosse adotada por artistas de estádio como Madonna e Kylie Minogue. Outra mostra dessa versatilidade é como a base rítmica se presta muito bem a canções evocativas de paisagens e atmosferas. Um exemplo forte, e também por ser um hit isolado, é “Meine”, de Daso, que, mesmo sendo menos dançante e mais techno, contém óbvios elementos house. Como parece acontecer quando se acha um elemento perfeito, todo o resto de “So Weit…” parece ser necessário. Os efeitos rítmicos e as linhas de sintetizadores são tão elegantes quanto a voz isolada de Daliah e o coro angélico, talvez porque, uma vez que Jürgen tenha achado o ponto fundamental do que queria fazer, todo o resto tenha basicamente mais aparecido a ele que propriamente sido buscado. “So Weit…” é, para este ateu, algo como um hino religioso sensual que se ouve na cama fantasiando mundos perfeitos que nunca existiram enquanto se rebola mentalmente.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

RIAA [Wikipédia] | This Heat, “24-track loop” | “Schlager: amado e odiado” [Matéria, DW] | Daliah Lavi, “Vielleicht Schon Morgen” | Vaudeville [Wikipédia] | “Sábado de Blues: O Blues e os Plágios do Led Zeppelin”, por Rob Gordon [Matéria, Medium] | Boards of Canada | Madonna | Kylie Minogue | Daso, “Meine” |

 

“So Weit Wie Noch Nie”, no fundo, é “I Will Survive”.
Mateus SóSucesso!

Amaury Jr. vai pras Bahamas fazer uma matéria especial “x” pro seu programa de fofocas de bom tom e gosto e leva à tiracolo Narcisa, que por outra questão “x” qualquer faz seu motim habitual lá no fundo sem que as câmeras captem – “hbcwjbcjwd, ai que delícia!, nivwn3vnr, ai que loucura!” – enquanto um gringo famoso com botox e camisa de botão florida Sílvio Santos de gola dentada semi-aberta mostrando o peitoral flácido fala pra Amaury, impassível, da época de ouro da disco na Studio 54, como era legal conversar com Debbie Harry, o quanto ela era engraçada, o quanto Warhol era críptico nos seus chistes e fino em seus shades, toda a graça existente naquele público maravilhoso que frequentava a boite blablablá.

Bem, acho que carreguei nas tintas, mas estranhamente “So Weit Wie Noch Nie”, de Jürgen Paape, me soa uma boa trilha sonora pra esse pantinho.

Olha, fui catar sobre Jürgen Paape, e das poucas que descobri, soube que é dono de um selo (Kompakt), que ele é propositalmente underground pra dedéo, assim como sua maior assinatura musical é essa house – e que house, viu? –, uma música que é baseada naquela outra de Daliah Lavi, “Vielleicht Schon Morgen”, que, pelo que deu pra sacar, é uma diva crooner com tintas mezzo cafonas no limiar da beleza, e vai ficando por aqui. É até bom que seja assim, que eu fique com esse pouquinho, porque daí fico eu no puro, eu e a música, a música e eu, nos olhando pra ver se dessa cana sai açúcar…

Já nos primeiros samples de “So Weit…” aflora um clima denso de pista lotada pela fauna de Ibiza, ao menos da Ibiza clássica, ainda próxima da disco, um paraíso regado a muita caricatura de glória e riqueza, clima de azaração, playmates e gente bronzeada bebendo a bebida que pisca, riso sardônico. Porém, talvez “So Weit…” tenha um clima mais modesto mesmo, de proporções mais “”undergrounds””, uma track que casaria melhor num balneário alternativo da dondocada alternativa. Em Carneiros, digamos.

Tudo que falei sobre Ibiza, lógico, é minha imaginação gritando à mil, já que sou um pé rapado e minha grana dá pra passar menos de uma semana em SP, que dirá um verão na orla espanhola. Mesmo assim tenho de confessar que, num país em que a desigualdade cheira à escravidão senhorial, eu, um professor, sou privilegiado. Mas, voltando, matérias e fotos como essa e essa [clique no amarelinho] contribuem pra que eu enseje esta narrativa e turbine a imaginação.

Só que, calma, talvez o que brota nessa faixa não seja tããão assim também.

“So Weit…” também parece querer nos levar à passeio pra, então, cair fora seja lá do que for. Tipo como a alegria com Ritalina ao se dirigir um carro em meio a uma estrada rodeada pela natureza com o sol se pronunciando entre as frestas do mato. Na real, essa conexão aqui não é de graça. Existe uma similaridade de fundo entre um certo efeitinho que rola em “So Weit…” e “Star Guitar”, dos Chemical Brothers, que lá no fundo é devedora de “Autobahn”, do Kraftwerk. Um tipo de efeito sonoro que soa análogo à convenção artificial de um transporte em movimento enquanto você assiste ao mundo pela janela, seja esse transporte um carro, um trem, um metrô, o que seja.

Também rola na faixa de Paape meio que um clima esfumaçado, só que não do mesmo tipo que um cool jazz de Chet Baker. Estaria mais prum esfumaçado onde, por detrás da elegância e beleza padrão, rola uma sequência de bolas fora e heroin chic, um quê de música e moda. Me vem aqui Kate Moss. Me vem, como imagem, Terry Richardson, que além de ter feito o clipe de “Vai, Malandra”, de Anitta, foi acusado à rodo de assédio e abuso de modelos. É sobre essa distinção com decadência de que falo, dessa coisa que quer escapar mas que não escapa na EDM, que meio que é parte de seu lifestyle, um clichê como a “idade limite” de 17 anos descrita na letra de “Seventeen”, da Ladytron, polaroid e estereótipo da vida de modelo.

Num geral, a EDM é historicamente feita de escapismos. Também, pudera, muito de seu público histórico é feito de pessoas marginalizadas social e racialmente nos EUA, seja a comunidade LGBTQIA+, sejam latinos e pessoas negras, sejam mulheres etc. Numa vida osso pra tantos e tantas – indico aqui o filme “Paris is Burning”, de Jennie Livingston – , nada mais justo que aconteça ali, na pista, um dia de rei ou rainha, mesmo que falso. Na verdade, o escapismo como tema grudou na EDM feito chiclete no sapato. Várias músicas falam disso, a própria “Lose Yourself to Dance”, do Daft Punk, tem na letra esse mote, mas pra mim a que melhor retrata mesmo é a disco “Last Night a DJ Saved My Life”, da Indeep. Foi aliás a disco quem delineou o que seria toda a EDM posterior – casada com o som do Kraftwerk, né?

Só que os tempos são outros, o fosso aumentou, o público se assemelha mas não é exatamente o mesmo. Não em todos os lugares. Pois há uma baita distância entre uma noitada na Metrópole, em Recife, e uma festa topzeira com DJ lá na Carvalheira, um público, este último, que, no automático, espera ansioso por se empoleirar num apê do Cais José Estelita, para deste modo assinar, direta ou indiretamente, a pena de morte do vuco-vuco vizinho do Bairro de São José.

Noves fora zero, entre o colorido e o apocalíptico, entre o ambiente e o maquinal, entre o êxtase e a abjeção, “So Weit Wie Noch Nie”, como boa parte da house music, também nos soa como esse convite paradoxal à superação momentânea e ilusória de que falo, aquela que, na pista, nos tira da dor por meio de batidas amaciantes, um travesseiro depois da clausura diária. Existe na house algo de uma primavera que antecede o verão, ou do verão em seu suor pleno, um estilo que parece nos apontar para algo que estaria bem ali, não sabemos bem o quê, nos esperando – promessa de vida?

Só que, enquanto tudo ficar como está, talvez o que nos reste seja mesmo sofrer a eterna desventura de viver e, em coro, continuar berrando “I Will Survive” [“Eu Sobreviverei”], unidos, com Gloria Gaynor.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

“Don’t touch is Art!” [Narcisa, YouTube]. | “Studio 54 – A Discoteca que fez História em Nova York” [YouTube] | Blondie, “Atomic” [Música com legendas] | “Andy Warhol, Studio 54 y la ‘enfermedad social”, por Isabel Espiño [Matéria, El Mundo] | Jürgen Paape [Biografia, Resident Advisor] | Daliah Lavi, “Vielleicht Schon Morgen” | “Carneiros: ‘É uma praia privatizada’”, por Letícia Lins [Matéria, #OxeRecife] | “Una mirada en el tiempo a la Ibiza de los 80s y 90s” [Matéria, The Basement]  | “Ibiza já era bem louca antes da geração rave chegar”, por Jak Hutchcraft [Matéria, Vice]Chemical Brothers, “Star Guitar” | Kraftwerk, “Autobahn” | Chet Baker | “Heroin Chic: Quando a estética viciada invadiu o high fashion”, por Caroline Campos [Matéria, Yves Sem Laurent] | “Kate Moss: los escándalos del ícono del Heroin Chic que rehabilitó su imagen y ya tiene una sucesora”, por Camila Álvarez [Matéria, bibliochile.cl] | “Um detalhe complexo de ‘Vai, Malandra’ que quase passou batido tem gerado um grande debate” [Matéria, Hypeness] | Ladytron, “Seventeen” | “Paris is Burning”, de Jennie Livingston [Filme legendado, YouTube]Daft Punk, “Lose Yourself to Dance”Indeep, “Last Night a DJ Saved My Life” | Kraftwerk | “O melhor dos points gays do Recife” [Matéria do Jornal do Commercio no YouTube] | Gerardo Rabello TV, “Carvalheira na Ladeira – Parte 1” [Matéria, YouTube] | “Recife, cidade roubada” [Vídeo do Movimento Ocupe Estelita, YouTube] | “Bairro de São José: história, descaso e destruição”, por Clênio Sierra de Alcântara [Matéria do blog A Cidade e a História] | Elis Regina e Antonio Carlos Jobim, “Águas de Março” [Vídeo legendado] | Toquinho, Vinicius de Moraes & Maria Creuza, “Eu sei que vou te amar” | Gloria Gaynor, “I Will Survive” [Vídeo legendado] |

 

>FICHA TÉCNICA:

Faixa composta por Jürgen Paape.

Vocal: Sonya Lübke

Selo: Kompakt.
Prensado por: MPO.

Produção: Jürgen Paape

Jinjer, “Pisces (Live Session)” [UKR, 2017].

[PRA OUVIR, CLIQUE AQUI.]

 

Atenção: abaixo segue três textos diferentes escritos cada um por um autor diferente.

 

Sobre pandas e homens – o metalcore viral de Jinjer.
George SóSucesso Yeah!

Escrever sobre metal é um saco. Por mais que você tente parecer entendedor do estilo, sempre vai ter aquele superfã atento que vai apontar alguma especificidade ou detalhe que transformará seu texto no mínimo em uma piada interna de seu grupo de RPG. Por motivos nunca compreendidos pela ciência, o heavy metal e toda a sua ramagem – black, death, doom, gore, grind, speed, thrash (gêneros que existiam até a época em que acompanhava) – tem a estranha capacidade de transformar pessoas comuns como balconistas, engenheiros, entregadores, médicos, professores e bancárias em verdadeiros prosélitos vestidos de preto, adoradores de um objeto sagrado incompreendido e misterioso dispostos a fazer tudo para defendê-lo, inclusive destruir os argumentos pífios de um ecleticozinho metido à besta. Óbvio que isso é um grande estereótipo e nem todos os fãs de metal colocam o sectarismo de suas escolhas acima do diálogo e do conhecimento. Não é a pureza do metal, mas sua abertura à inovação que temos visto nos últimos 20 anos que faz com que esta seja praticamente a única vertente do rock’n’roll que criativa e economicamente não está respirando por aparelhos.

Não devemos confundir o fã conservador do metal mamute congelado no tempo com o seu público real. “Real” sendo aqui a galera truezeira, na falta de um termo melhor, que coloca a integridade de sua escolha estética dentro de uma ética da música extrema e entendem o metal em sua linha adaptativa. Pessoas como Leko, Silva Trash, Filipe Filiposo, nosso futuro colaborador Mateus Otaku e meu amigo Marcos da FAFIRE. Gente que se emociona ao comprar um split da banda mais obscura do leste europeu ou possui a capacidade ubíqua de estar em todos os shows da cena, apoiá-la e visibilizá-la, mesmo que para isso tenho que sacrificar seus suados trocados. Não são músicos, nem artistas, mas apenas pessoas inquietas que não se deixam anular pelas pressões da sociedade. Anônimos que traduzem o espírito desbravador do metal: gente simples, de classe trabalhadora, com sonhos e ideias de mudar o mundo a partir de seu desencaretamento metalístico, sem aquele ranço de ódio a tudo que não seja pesado, como um certo crítico da coluna “O Radical” da Rock Brigade, para quem o mundo começava e terminava em um show da Dorsal Atlântica.

Por isso ao tratar de bandas e estilos mais recentes temos que ter a atenção redobrada. Pois além das informações sobre a banda, primeiro é necessário entendermos em qual novo gênero aquele som se encaixa, suas características, influências e bandas similares (aqui excluo as bandas derivadas da tradição mais conservadora do “verdadeiro” metal, por questões minimamente criativas) para não incorrer em imprecisões e falsificações.

A depender do tempo de pesquisa e convivência, isso pode dar a origem a um texto que faça comparações e linke influências, e que traga, de quebra, alguma informação nova sobre a banda ou estilo. Em suma, uma nova perspectiva. Algo que saia da crítica jornalística ou laudatória para colocar uma pulga dentro dos ouvidos estourados do leitor. No entanto, se esse tempo não existe, a única saída é apegar-se às poucas e duvidosas informações da internet e confiar no seu instinto de sobrevivência.

No caso de Jinjer e do gênero ao qual a banda é filiada, o metalcore, uma espécie de manguebit da música de peso, a coisa se torna particularmente difícil devido ao paradoxo representado pelo sucesso da banda. Apesar de vir da Ucrânia, a banda é bem conhecida, o vídeo de sua música mais famosa, “Pisces”, possui mais de 42 milhões de visualizações, alcançando o cobiçado status (para youtubers e influenciadores) de viral. Não sei se essa quantidade absurda de exposição se deve puramente ao estranhamento causado pelos urros e grunhidos guturais de fazer inveja a Barney, o urso, do Cannibal Corpse, de sua vocalista Tatiana Shmayiluk que se alternam com vocais à lá The Voice, ou pela capacidade de engajamento da banda na internet, já que outros vídeos chegam próximo à marca dos 10k no YouTube. O certo é que a banda se coloca na tênue linha entre essa capacidade adaptativa do metal e seu conservadorismo estrutural inerente. O metalcore em si já é um gênero limítrofe pois advindo do crossover de bandas dos 80 como D.R.I e do hardcore metálico (Earth Crisis, Vision of Disorder), transforma o princípio da fusão em uma lei, abrindo espaço para uma oxigenação do gênero. No entanto, ao promover isso, a distinção com outros subgêneros como o groove metal e o próprio nu-metal torna-se uma jornada apenas para iniciados. Essa ausência de identidade muitas vezes faz com que o som das bandas, tal qual aconteceu no devir do manguebit, assuma uma característica genérica e formuláica. O que antes seria inovador, vira apenas a repetição de padrões como vocais guturais alternados com melódicos, mudanças repentinas de andamentos e baterias metranca.

Para ouvidos pouco treinados, Jinjer, por exemplo, pode lembrar muito os primeiros discos do Pantera e ainda remeter ao nu-metal de bandas como Korn e Slipknot. Isso faz com que a verdadeira tempestade vulcânica que sucede a calmaria melódica que vemos nas câmeras 4k do viral de “Pisces” fique parecendo apenas um show de pirotecnia de réveillon. Muda todo ano mas é sempre a mesma coisa. Segundo fontes seguras, a banda ainda flerta com dancehall e gosta de Cypress Hill. A escuta de seus outros discos não foi suficiente para desfazer a impressão de generecidade, apesar de uma música ter me pego pelas entranhas: “Who is Gonna Be the One”. Obviamente, essa impressão vem da falta de comparativo com outras bandas do estilo como Killswitch Engage e Avenger Sevenfold. Mas no caso de “Pisces” e seu fenômeno midiático, por mais que nos esforcemos, a sensação que fica é a de que este vem apenas do esquisito de sua performance e de que sua única diferença para vídeos de pandas fofos destruindo supermercados é o fato de seus protagonistas serem humanos.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

“Sobre Ratos e Homens”, de John Steinbeck [Wikipédia] | Dorsal Atlântica | Cannibal Corpse | D.R.I | Earth Crisis | Vision of Disorder | Korn | Slipknot | Cypress Hill | Jinjer, “Who is Gonna Be the One” (Ao Vivo) | Killswitch Engage | Avenger Sevenfold | “Nunca Diga Não ao Panda” [Propaganda Clássica do Egito] |

 

Jinjer, “Pisces”. “Ok boomer.”.
Mateus SóSucesso!

Uma brother um dia me mandou um link, como vez por outra me manda, link de música, um dos interesses da gente. Como a sintonia é a mesma, fui sacar qualera. E era o vídeo da Jinjer, banda ucraniana cuja música, “Pisces”, já chegou na marca de mais de 40 milhões de visualizações. Muito pruma banda metal e coisa e tal.

Daí, vídeo iniciado, e eu: “Putz, acho que essa turma aí é tipo uns ex guerreiros do metal fazendo uma musiquinha melosa pra isqueirinho no Geraldão (esse estádio que voltou a existir agora agorinha no meio da pandemia :0 ), putz, que saco, minha brother né de pelegar assim…” e por aí seguia. Nunca curti Alanis Morissette e toda a bagulhada radiofônica MTV – que era muita, de Sublime a The Presidents of the USA, uma banda que ainda bem que foi esquecida. Se engana aquele ou aquela que é só memória afetiva e loas e flores pra MTV, um canal que tinha realmente muito programa massa, mas que tinha também muita bagaça enlatada na programação, era um saco assistir durante o dia – o melhor era tardão da noite mesmo (aquele abraço pra tu, Massari!). Mas, enfim, falo tudo isso, só que não sou essa truezeira toda, coração menino, curto músicas de amor e tudo, só que amor dói, né?, e tipo Tori Amos, pra mim, combina mais com essa verossimilhança afetiva que aponto. Tem umas dela que são de cortar os pulsos, e Amos vem sendo esquecida sistematicamente, uma compositora com discos bem fera.

Enfim, tava lá de boa na lagoa, sacando a dos falsos metaleiros, só que o clima Alanis de repente, de repente… ahn, que porra é essa?, do nada brota uma malevolência metal. O.o PORÉM… linha Korn etc, isto é, a banda cai noutra bagaça, só que agora puxando pro nu-metal.

Vey, sou um ranheta. Nu-metal sempre foi um estilo de aborrescente leite com pêra; eu era aborrescente, mas leite com pêra tou fora. É tipo um som feito pra animar txurminha fazendo pipoca na audiência – tipo pista de dança heteronormativa, aff, né? Ou seja, esse som do conjunto Jinjer tinha tudo pra dar errado pra mim, só que, pelo contrário, deu certo. Fiquei me perguntando: o que tá acontecendo, o que se passa, qual é a minha verdade, “onde está Wally”?

Certamente, o que me deixou de cara foi a capacidade vocal de Tatiana Shmaylyuk (deixa todo mundo, né?), uma cantora e tanto essa da banda. Impressiona como ela pode ir pra picos tão extremos, como desliza de uma vibe pra outra, como ela não fica com a garganta arranhada e tossindo quando depois de interpretar o diabão volta pra miadeira grudenta da melodia – com umas horas, no final, em que alterna tudo na mesma progressão. Aliás, é curioso: “Pisces” é uma composição grudenta, fica na cabeça imediatamente, talvez por ser essa mistura da miadeira com a pipoca que digo. Mas, voltando pra Shmaylyuk, você fica: “Como pode, donde brotou essa vocalista?, né possível, só pode ser recurso de estúdio…”, porque não lembro de nada igual agora, talvez o motivo de tanta visualização no YouTube. Porém, bicho, ela canta de fato do mesmo jeito em shows facilmente assistíveis na plataforma, o que significa que “ei, isso é mesmo real, vey…”.

Não sei, mas puxando assim de memória, somente o Queen chegou perto desse fluxo insólito, de sair de um rock meio prog pra canto de ópera, do chororô pra alegria extrema etc – vide “Bohemian Rhapsody”, famosa. Só que a gangorra sonora impressa por Shmaylyuk é outra, de mundos a princípio opostos, mas talvez não nesses tempos onde, se você quiser, você escuta tudo junto e misturado. Claro, o embolhamento está piorando a cada dia, mas a possibilidade de você sair de 8 pra 80 tá a um clique. Já se podia antes, era uma prática minha e dos chegados e chegadas, só que agora tá papinha na boca, só é querer. O problema é que tem uma galera que não quer, tipo o futuro parece ser o de gente com alma engaiolada mesmo. Vejamos.

Bem, tá rolando umas surpresas, como essa faixa, que me parece sair da mesmice sectária dos gêneros. Me pergunto: essa faixa abriria a guarda de mundos fronteiriços? Essa bomba de açúcar radiofônica + malvadeza truezona faria os truezão se abrirem e abraçarem gente que vomita arco-íris? Não sei, sei lá, acho que não. Teve um monte que curtiu o vídeo, mas teve um monte que descurtiu lá – e não foi pouco.

Falei da vocalista, que é de deixar incrível, que senhor vocal!, mas o background é identicamente chuchu beleza. Muito da naturalidade com que a composição sai da miadeira estereotipada pra daí brotar o monstrão possui dívidas também com os músicos. O arranjo realmente desliza junto, o vai e vem parece natural da forma com que é colado, tipo não é um momento x que sai pra outro y, parece que x e y foram feitos um para o outro, que é “tudo a mesma dança, meu boi!”. Aliás, curioso lembrar dessa música cantada por Gil e com letra de Torquato, pois algo similar rolou no Tropicalismo brasileiro, de fundir o que seria oposto e improvável, a saber, a música popular daqui (o bumba-meu-boi da letra) com uma bagagem ocidental tanto de concerto quanto do rock (no caso da letra, o iê-iê-iê, que aparece cifrado quando se diz “ê bumba, iê-iê-iê!”). Só que é outro momento, é outra coisa, Jinjer é uma banda metal de agora e sem manifesto. Segue.

E sabe aquele cacoete de músico amostrado? Os músicos da banda têm, tipo os caras mostrando pra câmera que fazem umas aranhas nos instrumentos de cordas, que o baterista toca todas sem esforço etc, aquele praquêisso padrão. Contudo, isso tudo é menor, afinal é imagem. A naturalidade sonora toda do barulho + cuti-cuti supera essa coisa de conservatório dos rapazes. Tá odara.

Mas, olha, se tu é um millenial que acha que uma obra morre pelo spoiler, pode ser que essa canção já tenha morrido pra tu, visse? Só que eu acho, sinceramente, que tu tá perdendo muito indo atrás de “happy end” por controle remoto, afinal, a vida não se controla.

Vá por mim, millenial, saca lá, capaz de tu curtir também. Vá lá, velho, deixa de tédio, se aventure, seja feliz e se surpreenda. Um beijo pra tu.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Geraldão [Recife Ordinário, Twitter] | “Veja as fotos do novo Geraldão, inaugurado nesta quinta-feira (24)” [Matéria do Sistema Jornal do Commercio, NE10] | Alanis Morissette | Sublime | The Presidents of the USA | Fábio Massari | Tori Amos, “Blood Roses” (Ao Vivo, 1997) | Tori Amos, Boys For Pele [Disco] | Korn | Nu-metal [Wikipédia] | Jinjer, “Pisces” (Ao Vivo, 2019) | Queen, “Bohemian Rhapsody” | Gilberto Gil & Torquato Neto, “Geléia Geral” | Iê-iê-iê [Wikipédia] |

 

Jinjer, “Pisces” – “Fez que foi, não foi, e acabou não fondo mesmo”.
Aroldo SóSucesso!

Uma apresentação metalcore editada de modo ultra-clean, mas sem playback (e portanto de acordo com a ética do metal), de uma música mediana, e temos uma sensação de YouTube. Três anos na plataforma e 50 milhões de visualizações para algo ainda longe da escala dos mega-eventos de R&B não é de se desprezar, mas a música e o vídeo são.

Aos fatos: a banda ucraniana Jinjer é underground? Não. Os videoclipes, as vendas, as apresentações lotadas, tudo isso não é underground; Jinjer é nota de rodapé na enciclopédia gigante que é a indústria musical, mas pelo menos está lá.

O crucial para o sucesso do vídeo (de uma banda que, de qualquer modo, angaria uma média de 2-5 milhões de visualizações por vídeo) é que ele escancara visualmente a proficiência vocal de Tatiana Shmailyuk, cujo alcance vai de um registro suave a vocais guturais. Mas eu assistia àquilo me perguntando “ok, mas isso tá indo pra onde mesmo?”. O culto ao vídeo mostra como um truque sensorial bem feito é rentável em tempos de déficit generalizado de atenção.

E lá fui-me ver outros vídeos de Jinjer e de artistas similares e o metalcore a cada novo vídeo se aparentava mais a um ioiô colorido, que, a depender da habilidade do usuário, gera efeitos mais ou menos interessantes, mas que continua sendo um brinquedo, e portanto esquecível. O metalcore de Jinjer é no máximo uma montanha-russa: a sensação de vertigem some conforme o estômago se acostuma.

Essa vacuidade se arraiga em boa parte pelo desejo do público, criança carente tornada satãzinho atiçador, cujas exigências são viciosas e viciantes.

PARÁGRAFO ÚNICO: A rigor, esses problemas são pragas que assolam regularmente a música pop em geral, mas o nó aqui é o parasitismo cujo hospedeiro ideal é a vontade de ser bombástico.

E já que eu me perdi mesmo, voltemos ao ioiô, que, mesmo o de plástico, ainda surpreende nas mãos de alguém talentoso ou de alguém criativo que o desmonte e o transforme em um novo brinquedo. Acho que Jinjer quer ser esse segundo jogador, mas seus fragmentos estilísticos só me fazem pensar num método composicional baseado na aleatoriedade e falta de noção do Roletrando. Sim, estou falando de Silvio Santos. O metal, no seu pior, é uma espécie de Roletrando que se leva a sério, o cúmulo do kitsch, a buscar epifanias através do Yin do chororô sentimental e do Yang das guitarras libertadoras (ou o contrário, sei lá), numa dinâmica narrativa de saga épica em que a calmaria precede a batalha que precede o triunfo que precede o período de refração pós-ejaculatória.

“Mudando de assunto”, apesar de não ser reacionário a ponto de acreditar em incompatibilidade absoluta na música, já me deparei com algo que só a falta de senso de ridículo fruto da canalhice extrema é capaz de criar: a venalidade do (prepare-se) rap sertanejo que ouvi numa bodega gaúcha é tão integral ao som que gruda como cola de fezes ao ouvido. Jinjer não é canalha, mas sua experimentação soa tão artificial que essas misturas de sons antípodas resvalam pro contrário da intenção original, o som se torna monótono como um teste de Rorschach, imagens fragmentadas mas simétricas, em que só se veem morcego, borboleta e focinho de cachorro. Em “Pisces”, Tatiana canta uma melodia agradável e esquecível apenas para contrastar com a parte pesada da música. Jinjer não é coerente como John Zorn e Mike Patton, porque acredita demais em coesão, e a coerência desses artistas nasce justamente de mandar a coesão pro espaço. Jinjer bota tudo no automático: parte lenta suave, vocal gutural, repita 3x. Seu público não é reacionário como o de artistas corporativos, mas a cena mesma, por mais organicamente estabelecida, já se basta como tirana de si própria.

Talvez o lado tirânico do público, em seu aspecto sexista, também ajude a explicar por que há tantos dislikes em uma música que parece ter todas as qualidades musicais pra ser um hit do gênero. Os comentários sobre a beleza de Tatiana aparecem com muita frequência. Às vezes, comenta-se antes sua competência, talvez pra evitar a acusação de sexismo . Do outro lado da mesmíssima moeda, uma mulher competente que se preocupa com a aparência talvez seja o pecado máximo para alguns fãs, mesmo que ela apenas use um pouco de maquiagem de tons escuros, “gótica”, e se vista dentro dos padrões estéticos do gênero, assim como o resto dos integrantes, de quem não se elogia a beleza mas nem tampouco são desmerecidos por seu gênero.

As mudanças dos tempos se dão aos trancos e barrancos, e às vezes se avança aqui pra retroceder ali. Visto em panorama histórico, o metal tem um histórico de preconceito ao que não seja homem, branco e heterossexual. Faz sentido que esse comportamento ganhasse espaço e vazão em uma música que emula arquétipos masculinos não só de força bruta, mas, talvez principalmente, de poder. Como a mudança de mentalidade do público contemporâneo se dá cada vez mais rápido, o processo é heterogêneo e a velha mentalidade encontra um jeito de se manifestar, muitas vezes mascarada sob seu suposto contrário, no caso dos elogios à beleza de Tatiana, e em outros casos, através de acirramento de reacionarismo latente em figuras como Phil Anselmo.

É árdua a batalha, e talvez, conforme minorias tentem se firmar, seja ainda mais pras mulheres. Os obstáculos não são fáceis, mas têm sido enfrentados. Rob Halford, por exemplo, demorou a assumir-se gay mas sua imagem pública mudou pouco. Mas Rob é um caso raro dentro das grandes bandas de metal e provavelmente o fato de ser um ícone do gênero tenha lhe conferido alguma proteção. As coisas só vão mudar quando divisões equalitárias se tornarem comuns. Fora do metal, há poucas bandas na história do rock exclusivamente femininas ou mistas. O metal, na verdade, é só o caso mais óbvio de um velho problema.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Roletrando [Programa Sílvio Santos, 1992] | “Estilo Kitsch”, por Ana Lucia Santana [Matéria] | “O que é Yin Yang?”, por Kenji Takada [Matéria] | Teste de Rorschach [Wikipédia] | John Zorn | Mike Patton | “Rob Halford revela como foi assumir-se gay à MTV em 1998”, por Igor Miranda [Matéria] | Judas Priest, “Painkiller” | The Runaways, “Cherry Bomb” | Volkana, “Darkness” |

 

>FICHA TÉCNICA:

Jinjer é:
Vocal: Tatiana Shmaylyuk.
Guitarra: Roman Ibramkhalilov.
Baixo: Eugene Abdiukhanov.
Baterista: Vlad Ulasevich.

Direção do Videoclipe: Oleg Rooz.

Gravação: Istok Studio (Quieve, Ucrânia).
Mixagem: Max Morton (Morton Studio).

Editorial #2: Hits SóSucesso!

Por volta da década de 1960, quando a indústria fonográfica bombava, surgiu um termo para um fenômeno típico do período: “one-hit wonders”, que em português livre significa “delicinhas de um sucesso só”. O termo se referia a bandas em geral estadunidenses, muitas delas de garagem, que conseguiam emplacar sucessos – geralmente regionais – que suplantavam o próprio conjunto e sua discografia. Nem sempre condizente com os fatos, posto que muitas destas bandas também tiveram grandes discos para além de apenas grandes faixas, eram pequenos sucessos que ao longo se tornariam referências de uma era, não raro sucessos tornados undergrounds pela ação inexpugnável do tempo.

Nós, da SóSucesso!, escolhemos seguir esta pista e daí então escrevinhar críticas sobre algumas faixas ao nosso ver significativas deste ou daquele artista. Os critérios para a escolha das composições vão desde sua relevância social neste último período (as canções de Jinjer e Desiigner certamente se enquadram fácil neste quesito), à própria natureza de um determinado gênero, como a EDM – ou “eletrônica dançante” –, que muitas vezes desenvolve-se em torno de “tracks” (aqui representada por Jürgen Paape), a apenas e tão-somente o capricho de nossa preferência pessoal com relação a um determinado compositor (O Conde Só Brega, com tantas e tantas faixas de destaque, tem para nós a quase obscura “Cheli” como sua faixa + q d+).

Como tudo, talvez as nossas escolhas gerem controvérsia pelo método usado. Mas o que fazer quando o próprio nome do blog, e da equipe que faz o blog, são contrários aos fatos, ou seja, um blog e uma equipe que tratam fundamentalmente de um monte de, ér, digamos, peças fora da curva? Foi triste.

Esperamos, ao menos, que os textos lhes sejam agradáveis. Assim como a curadoria, claro.

Pedimos, sem mais, que por ora deixem os ouvidos de lado, e ponham seus respectivos olhos nas mal traçadas que seguem. Isto é: leiam, garay!

SóSss! EXTRA: Simon Reynolds e a EBM (Tradução).

Com a publicação deste texto de Simon Reynolds, nós, da SóSucesso!, inauguramos em nosso blog uma seção que pretende trazer traduções que ora vemos como relevantes e, de preferência, ainda não vertidas para o português. Para além de proporcionar aos nossos leitores e público em geral o contato com o universo da crítica internacional de música – universo muitas vezes interdito pela barreira da língua –, queremos, antes, trazer textos que contribuam, por sua relevância e diversidade, para a formação de uma perspectiva criteriosa, analítica, assim como também social.

Simon Reynolds é um jornalista britânico ainda na ativa que, nos idos da década de 1980, deu início a sua carreira em fanzines e na Melody Maker. Reynolds também escreveu para a New Musical Express (NME) e fez parte de um grupo de jovens críticos que tinha como principal diretriz uma perspectiva de análise musical atenta a como questões de raça, classe e gênero afetariam a indústria cultural para além dos clichês e dos círculos viciosos musicais de sua época. Autor de um livro clássico sobre o pós-punk inglês, Rip Up and Start Again, Reynolds se tornou conhecido por seu interesse em gêneros que ultrapassassem a bolha do indie britânico comum à NME. Um de seus trabalhos mais importantes, a coletânea de textos Bring the Noise, reúne 20 anos de escritos sobre hip-hop, incluindo o artigo “Strength by Strenght” sobre a revolução político-sonora desencadeada pelo conjunto de rap Public Enemy e seu discurso subversivo e provocador. Simon ficou também conhecido como um dos primeiros críticos da grande imprensa musical inglesa a escrever sobre as subculturas eletrônicas, muitas vezes criminalizadas e marginalizadas, como a cena rave, o grime e a cultura dubstep. Neste artigo, que aqui traduzimos, intitulado “Sons perturbadores para acalmar a nova era”, publicado em 1991 no New York Times, Simon faz uma análise da cena IBM (Industrial Body Music) – talvez mais conhecida como EBM, na qual se incluem boa parte de seus artistas –, a partir da resenha do à época recém-lançado disco Tiranny for you, do Front 242. Hoje, Simon continua ativo e escrevendo livros como Retromania: Pop Culture’s Addiction to Its Own Past, sobre a tendência retroísta da música pop atual e um livro ainda a ser lançado sobre trap e drill. No Brasil, Simon só possui uma coletânea de textos traduzidos, Beijar o Ceú, livro publicado pela finada Editora Conrad.

 

Sons perturbadores para acalmar a nova era.
Simon Reynolds, 24/02/1991

Tyranny for You, o novo álbum do Front 242, soa como o negócio de sempre da banda belga. O trabalho apresenta suas habituais marcas registradas: bate-estaca frenético, pulsações sísmicas, floreios bombásticos de sequenciador e os cantos aos gritos, exigindo atenção. Front 242 está menos interessado agora nos samples que pontuavam seus tecno-mantras (fragmentos de discursos políticos, pregação televangelista e diálogos de filmes trash), mas mantém a aura de ameaça. Há uma diferença crucial, porém, em Tyranny for You: é o primeiro lançamento do Front 242 por uma grande gravadora. Após quase uma década de “operações secretas” independentes, a banda assinou com a Epic Records e está jogando suas fichas para uma audiência maior. Se antes eles se comparavam a uma unidade terrorista, agora falam de como “o terrorismo aspira à tirania”.

Não existe acordo sobre como chamar o tipo de música que o Front 242 faz: disco industrial, dancecore e euro-body music são apenas alguns dos nomes que os grupos associados a essa sonoridade rejeitam com mais frequência do que aceitam. Mas depois de 10 anos como trilha sonora de uma cena pequena mas em crescimento, essa música pode estar à beira de estourar. A recente virada sinistra nos eventos mundiais pode até mesmo ajudá-la conforme o público dos clubes reage contra o otimismo dessa nova era da dance music e se volta para algo mais sintonizado com os tempos turbulentos que se anunciam. Se a disco é escapista, a disco industrial faz o caminho inverso: não há escapatória. Usando frases de efeito da mídia para criar imagens de conflito e calamidade, essa música quer menos documentar que amplificar a tensão do mundo exterior.

A rede de produtores e consumidores do gênero se estende da Iugoslávia à Bélgica, Grã-Bretanha, Canadá e Estados Unidos. Mas o mercado é dominado por apenas três gravadoras. Em primeiro lugar, está a Wax Trax, um selo de Chicago cuja produção inclui discos de My Life With the Thrill Kult, KMFDM e Front Line Assembly. A imagem pública da Wax Trax passou a ser definida pela figura dionisíaca de Al Jourgensen, o líder dos Revolting Cocks e do Ministry, seu projeto mais mainstream. Depois, temos a Play It Again, Sam, a gravadora belga que foi pioneira na euro-body music com grupos como Front 242, Grumh, Borghesia e Young Gods. A mais jovem das três gravadoras é a Nettwerk, de Vancouver, cuja lista inclui Skinny Puppy, Severed Heads, Consolidated e SPK. As três gravadoras são aliadas informais, muitas vezes licenciando as gravações umas das outras em seus respectivos territórios enquanto os membros de seus grupos frequentemente colaboram em projetos paralelos.

As raízes musicais da disco industrial (se esse é o termo para uma música tão inorgânica e mecanizada) estão na sonoridade euro-disco do final dos anos 70 inventada pelo produtor Giorgio Moroder e popularizada em canções baseadas em pulsos regulares como “I Feel Love”, de Donna Summer, que o público branco achou mais palatáveis que a síncope pesada do funk. Outra influência crucial é o grupo alemão DAF, do início dos anos 1980, que substituiu os arranjos suaves e exuberantes da disco sinfônica por pulsos rigorosos e precisos de sintetizador.

O lado “industrial” do gênero se originou com grupos pós-punk como Cabaret Voltaire e Throbbing Gristle, cujos membros acreditavam que o punk deveria perturbar cada ouvinte em particular e não simplesmente conclamar a juventude por meio de slogans políticos. Desafiar a audiência passava por alterar estruturas musicais tradicionais, experimentar novas tecnologias e explorar assuntos que solapavam “verdades” reconfortantes. No single “Headhunter”, o Front 242 traçou um paralelo desconcertante entre práticas comerciais agressivas e guerras tribais. A estética industrial também se baseou em produção cultural fora da música, em particular nas visões apocalípticas de escritores como William Burroughs e JG Ballard. De Burroughs, a música industrial tomou a obsessão com o controle (as letras expressam paranóia sobre redes de vigilância e manipulação mental subliminar) e a técnica de cut-up (através de citações justapostas aleatoriamente e frases de efeito da mídia). Por exemplo, tem-se a faixa “Funkhadffi” de Front 242, que incorpora partes de discursos de Muammar el-Qaddafi, o presidente da Líbia. De Ballard, a música industrial tem assimilado o interesse pela sexualidade aberrante e pelo terror.

A disco industrial é em geral fascinada pelos extremos da experiência humana e, em particular, pelos extremos da psicologia masculina: o fora-da-lei, o sobrevivencialista, o terrorista, o assassino em série, o ditador, o tecnocrata. Sua aura é sobretudo masculina. O adjetivo chave é “hard” [tradução livre: “duro”], como se vê em “batidas duras”, “viver de modo hard”, “hard core”/”extremo”. A dança é menos uma válvula de escape pela diversão que um teste de resistência física. Slogans típicos da disco como “botar o corpo pra trabalhar” são entendidos literalmente. Os ritmos que remetem à repetição de uma série de musculação e a repetição incansável evocam uma atmosfera de triunfo aeróbico; assim como a força que se ganha levantando pesos, a força aqui existe apenas para flexionar a si mesma.

Outra influência importante são os Futuristas italianos, o movimento artístico do início do século XX cujos manifestos celebravam a tecnologia e traços estilísticos brutais ao mesmo tempo em que denunciavam aspectos feminizantes da civilização. Como os Futuristas da primeira leva, as bandas de disco industrial mantém uma relação ambígua com o totalitarismo. Algumas fazem alusões mais explícitas. O grupo alemão KMFDM fala de seu sonho de um “fascismo positivo” – um exército de jovens marchando em direção ao amor e paz procurando construir uma sociedade em que imagens de violência sejam banidas. As letras de Front 242 propõem uma filosofia sobrevivencialista que já foi chamada de “micro-fascismo” e que se funda em organizar mente e corpo como um estado policial.

Mesmo que não se suporte a música, a disco industrial fascina porque exibe o espectro completo da patologia masculina – do rebelde sociopata sem causa à idolatria do poder adotada pelo fanático. Como o rap, a disco industrial fornece uma expressão hiperbólica de dois impulsos masculinos opostos. De um lado, tem-se o fora-da-lei revoltado contra Deus e cujos arroubos fundam-se no espectro que vai da egomania à autodestruição. O segundo impulso é a vontade de criar ordem diante do caos. O melhor representante dessa segunda variante é o grupo Consolidated, de São Francisco. The Myth of Rock, um álbum brilhante, ataca a noção da rebeldia do rock, que eles diagnosticam como um sintoma de atraso do desenvolvimento. Consolidated encara o rock como um beco sem saída retrógrado cujo maior efeito é manter as pessoas longe da possibilidade de mudar o mundo. O grupo admite com pesar os aspectos reacionários do imaginário totalitário do qual emergiu (eles falam pejorativamente de “supremacismo branco aeróbico”). Apesar de sua música partilhar de muito do fervor brutal do som industrial, Consolidated extirpou os aspectos perniciosos do som industrial, e nesse processo distanciou o som de seu lado infame.

UMA AMOSTRA INDUSTRIAL.

Algumas das melhores gravações de disco industrial atuais (clique no amarelinho).

Dysfunctional Relationship, Consolidated.
Essa é a faixa com o balanço mais convencional e mais palatável ao público consumidor do LP Myth of Rock, que mistura disco industrial e hip-hop de modo formidável. A letra ironiza a linguagem pseudo-científica usada por certos consultores e terapeutas.

Too Dark Park, Skinny Puppy. A fim de abrir os olhos e excitar paixões, Skinny Puppy enfia a cara do ouvinte no horror da vivissecção e do ecocídio. O álbum apresenta um arsenal de batidas frenéticas.

Supernaut, 1,000 Homo DJ’s. Ainda por chegar no mercado, essa é uma versão acelerada do clássico do Black Sabbath, uma blitzkrieg de guitarras que sugere o que seriam os Stooges se eles pertencessem ao século que está por vir.

Tyranny for You, Front 242. Aqui o grupo está mais romântico e relaxado, mas ainda faz um som opressivo.

Comadre Florzinha, Comadre Florzinha [BRA, 1999].

[PRA OUVIR, CLIQUE AQUI.]

 

Atenção: abaixo segue três textos diferentes escritos cada um por um autor diferente.

 

Comadre Florzinha (1999) – Jornada a um novo mundo (a partir da minha cama).
Aroldo SóSucesso!

Falar sobre esse álbum passa obrigatoriamente por falar da minha ignorância. Minha falta de intimidade com os instrumentos musicais usados aqui, e esse é apenas um dos muitos exemplos possíveis de como meu casulo enrijeceu, já era um efeito de algo que me perturbava um pouco quando ouvi Mestre Ambrósio há algumas semanas. Como amo metáforas quase tanto quanto coisas bobas como lógica e honestidade intelectual, dá até vontade de ser Pollyanna e dizer que finalmente estou me metamorfoseando, só que não é bem assim. Nessa narrativa fofa, minha ignorância seria meu trunfo e eu teria ouvido Comadre Florzinha (mais tarde Comadre Fulozinha) de um modo puro, sem os preconceitos trazidos pelo excesso de familiaridade. Nos debates entre nós da SóSucesso!, temos chegado à conclusão de que toda música é passível de ser absorvida, entendida mesmo, imediatamente, pela sensibilidade inerentemente humana, e que há elos entre lugares geograficamente distantes, senão históricos, ao menos formados pela propriedade natural da música de objetivamente gerar padrões que se repetem em todos os cantos ou de causar sensações, por mais idiossincráticas, que se ligam umas às outras.

Minha história com esse álbum não é tão simples, infelizmente. Como ilustração dos meus problemas, trago outro debate do grupo, em que se aventou que eu seria o mais fechado ao diferente, o mais dentro de uma bolha, e que talvez eu tivesse até orgulho disso, e eu confessei que sim. Orgulho, no bojo, de ser limitado. Então esse casulo talvez não seja uma prisão temporária cuja dureza das paredes seja prenúncio de que irão desabar, mas mais uma cela em que se prende a si mesmo de bom grado, porque um dia, e ainda hoje, ela se mostrou confortável. Mas nem tão pessimista assim, também. Essa cela reverbera, e eu admito que uma cela que reverbere não serve pra metáfora, mas o fato é que ela reverbera e sente reverberações de fora. Verdade que continuo sem distinguir bem os instrumentos percussivos nem consigo enquadrar o som em esquemas teóricos ou ligá-lo a contextos artísticos e sociopolíticos amplos, mas o efeito sobre mim é real. Que esse efeito não seja forte cheguei a supor que se devesse a preconceitos, mas talvez nem tanto assim ou nem mesmo de modo algum, porque cheguei a uma espécie de compreensão a partir da qual as músicas começaram a ganhar personalidades distintas e me deixei envolver estética e conceitualmente, mesmo que não tenha aderido como se adere a uma paixão. Fechar-se em uma cela, mesmo com respiradouro, pode gerar uma distância entre a minha e a sensibilidade do mundo, marcar um limite, permitir a fruição mas roubar a chance da entrega. O que não quer dizer que se seja incapaz de reconhecer méritos, que aqui não são poucos.

Mas antes de falar de méritos, é importante frisar que só pude entrar nesse mundo sob certas condições. Andando em avenidas, cercado de alarido urbano, o som da Comadre Florzinha não conseguia respirar em meus fones de ouvido.

O som da Comadre Florzinha é cheio de detalhes, não há vazios no meio da percussão incessante, mas não há também histrionismo, não há o gosto pelo ultraje, a ânsia narcisista de gerar mais e maiores sons da música pop que conheço, e isso é especialmente verdadeiro em relação ao rock. É um som cheio, mas contemplativo, feito de texturas e a beleza da textura não é o detalhe, mas se dá na percepção da harmonia do todo. Deitado em silêncio, finalmente som e meu corpo se fizeram entender. O universo da Comadre Florzinha é um fluxo imagético em que as integrantes raramente tomam a frente e, quando o fazem, é mais para criar variedade na textura, trazendo novos elementos que vão sendo adicionados à paisagem sonora muito mais que, como é típico no som que costumo ouvir, ejetar arroubos nos ouvidos do público. E, a despeito do que essa descrição possa dar a entender, cada música tem uma cara bem própria, com destaque para “Maré” e “Grande Poder”, apesar de que todas as músicas mantenham a qualidade e as composições de membros da banda sejam do mesmo nível das mestras e mestres responsáveis pela composição da primeira metade do álbum. Por diferente que possa ser minha interpretação estética da realidade das relações entre as integrantes do grupo, esse álbum pode ser descrito como, em essência, uma narrativa coletiva. Nesse sentido, cedendo às indulgências de meus clichês pessoais, na minha obviedade, o que conheço que mais se parece com isso são as Raincoats, grupo inglês que começou no fim dos anos 1970. Não creio ser possível escapar de falar da questão de gênero aqui, mas também não sinto necessidade, do modo como senti e como tenho preferido falar desse álbum, de enveredar pelo assumidamente político. O que acontece é que o universo abordado pelas letras é muitas vezes feminino e essas são vozes, e consequentemente presenças físicas, femininas. Há também óbvias diferenças entre o modus operandi da Comadre Florzinha e o da maioria dos grupos associados ao manguebit, feitos de homens. Por fim, eu sinto que a dinâmica musical, apesar dos gêneros musicais distintos, entre as Raincoats e a Comadre Florzinha, passando ao largo de estereótipos sobre o feminino, é muito próxima, com ênfase na contribuição coletiva e no pathos em platô, trabalhado como narrativa, negando a necessidade da explosão individual para afirmar a subjetividade. Comadre Florzinha não me dilacera e me emociona como as Raincoats, mas daí a melhor explicação talvez seja mesmo a mais óbvia: minhas idiossincrasias e as vicissitudes da vida me tornaram refratário a todo um mundo de beleza, mas este texto é testemunho de que isso não é o fim do mundo, desde que se esteja disposto a admitir o erro e mudar.

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Mestre Ambrósio [Matéria deste honorável blog] | Pollyanna [Wikipédia] | Raincoats |

 

Comadre Florzinha e a horizontalidade da tradição.
George SóSucesso Yeah!

Chegamos ao fim deste #Especial com a obra que foi pra mim a mais difícil de analisar: o primeiro e homônimo disco da Comadre Florzinha. Lançado em 1999, o disco é um entrelaçado de ritmos como coco, toada de reisado, baião, polca e xaxado, embalados pela tradição de mestres e mestras, cantadores e cantadoras populares. Centrada principalmente na voz e na percussão, o disco é composto por releituras de músicas tradicionais, músicas de outros artistas e composições autorais.

Formada por Alessandra Leão, Karina Buhr, Isaar França, Renata Mattar, Telma César e Maria Helena Sampaio, a Comadre Florzinha representou na virada do século passado uma mudança importante no paradigma da cena local, não apenas por ser uma banda composta integralmente por mulheres em sua primeira formação, coisa rara nos anos 90, mas ainda, por um detalhe específico: a ausência de uma vocalista principal e a horizontalidade de suas performances, sem hierarquizações virtuosísticas e os delírios egocêntricos da cultura pop.

Praticamente todas as bandas do manguebit foram centradas em figuras de proa, geralmente masculinas, seja o MC Chico Science, o vocal punkbossa de 04 ou mesmo o trovador Siba. A excessão à regra foi Stela Campos e seu Lara Hanouska. Já a Comadre Florzinha foi a única banda do manguebit a se libertar da fórmula sagrada de band leader, a qual entroniza o popstar em detrimento da música como produção coletiva. Um fenômeno raro inclusive na música brasileira acostumada ao império do intérprete e às idiossincrasias de seus compositores. Essa característica era compartilhada com outra banda da época que se situava no espectro de crítica ao mangue: o Pajé Limpeza, banda experimental ligada ao coletivo artístico Molusco Lama.

Aqui é necessário entender que apesar de sua relevância e de ser vendido para a grande mídia como algo inovador, o manguebit não foi recebido na cidade de forma acrítica como uma panacéia revolucionário-estética que iria nos livrar do tédio mortal, amém. Recife, mesmo que periférica, é uma cidade portuária e cosmopolita, um lugar de circulação de ideias e pessoas. Na realidade, a operação realizada pelo mangue não era uma novidade em si, pois a psicodelia pernambucana já havia empreendido essa mistura de ritmos como rock, prog e música regional nos anos 70 para além do provincianismo armorial. Se pegarmos o Satwa de Lula Côrtes e Lailson ou o Paêbirú de Zé Ramalho e Lula Côrtes, a coisa vai até mais longe na sua universalidade, pois além dos elementos regionais encontramos elementos de música árabe, hindu e flamenca. Fruto da genialidade de Lula Côrtes, um dos artistas mais subestimados da música pernambucana.

A pretensão à novidade por parte do movimento mangue, esbarrava em certa medida na existência de uma cena underground que insistia em movimentar a cidade à parte dos pressupostos teórico-estéticos do movimento. Punk rock / hardcore, afoxé, samba e hip-hop faziam parte de cenas como as de Peixinhos e do Alto Zé do Pinho que movimentavam uma espécie de proto-economia criativa. Estas cenas não existiram a partir do mangue, mas ao mesmo tempo deste. Um dos grandes trunfos do manguebit foi a democratização de certos conhecimentos para um público pré-internet e carente de informações e sua contribuição para a formação de uma cadeia produtiva na cidade com estúdios, rádios e festivais. O novo no mangue foi o reforço da interface entre mercado e cultura, que antes já havia sido esboçada pela Rozenblit.

Mas a grande dificuldade ao analisar o disco da Comadre Florzinha foi meu completo desconhecimento sobre o som e musicalidade produzidos pela banda. Pelo fato bizarro da cultura popular estar fora de meus interesses no momento do surgimento da banda, o disco acabou por ser uma incógnita pra mim. Porém, ignorância se corrige com conhecimento, e ao me debruçar sobre ele, apesar de certa perda de fidelidade ao se transpor a energia vital da música popular para o ambiente de estúdio, vejo que é um disco que possui um caráter de pesquisa estética tanto nas composições autorais quanto nas releituras de mestres e mestras de reisado, um mundo inacessível para não-iniciados, tornando o som da banda indefinível. Como disse Karina Burh em uma entrevista: “Se for pra resumir o que fazemos, é preciso um tratado sobre a música regional brasileira. Em resumo, usamos instrumentos regionais e ritmos regionais brasileiros e o transformamos na nossa música”. E é assim em “Angicos”, música de Chico Science e Lúcio Maia, que junto com “Grande Poder”, do Mestre Verdelinho, curiosamente se posicionam em espectros opostos (uma banda do pop nacional e um mestre de reisado), mas que acabam por se tocar, nesse fenômeno de retroalimentação a que certo gênio chamou de “antropofagia”. Em conjunto com a releitura de “Xique-Xique”, de Tom Zé, e “Tamarineira”, de Elino Julião, confirmam o caráter de pesquisa quase mariodeandradiana do disco. Nas composições autorais, destacam-se o “Trem”, “Sapopemba” e “Poica” com suas melodias mouriscas.

Após esse disco, a Comadre Florzinha passaria por diversas mudanças de nome e formação até o seu não-fim oficial. Hoje, três das suas compositoras possuem carreiras próprias de maior visibilidade midiática: Isaar com, dentre outros, o seu disco “Azul Claro”, Karina Buhr que além de carreira solo, desbravou outros territórios como a literatura e as artes plásticas, e Alessandra Leão, que acumula entre outras coisas em sua carreira solo uma indicação ao Grammy Latino na categoria “música de raízes”. Todas as três trajetórias representam um desafio frente a uma indústria ainda dominada pelo machismo e misoginia e comprovam que o legado do manguebit reside não em seus cacoetes estéticos particulares, mas no comprometimento ético de parte de seus artistas com a coletividade da tradição e da cultura popular da qual surgiram.

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Chico Science & Nação Zumbi [Matéria deste magnânimo blog] | Mundo Livre S/A [Matéria deste incrível blog] | Mestre Ambrósio [Matéria deste ilibado blog] | Lara Hanouska | “Gnomos da Metrópole & Molusco Lama – Calourada de História UFPE” [YouTube] | Molusco Lama [Matéria no Jornal do Commercio] | Satwa, de Lula Côrtes e Lailson | Paêbirú, de Zé Ramalho e Lula Côrtes | “Tecidos Digitais – Nascedouro de Peixinhos – CTCD” [YouTube] | “Meu Bairro é o Maior – Alto José do Pinho” [Vídeo-arquivo da TV Viva, de PE, colocado no YouTube] | Fábrica de Discos Rozenblit [Wikipédia] | Karina Burh em entrevista no bate-papo da UOL | Isaar | Karina Buhr | Karina Buhr na literatura e nas artes plásticas | Alessandra Leão | Alessandra Leão indicada ao Grammy Latino por “Macumbas e Catimbós” |

 

Um Nordeste para além do puxadinho [Gilberto] Freyreano.
Mateus SóSucesso!

Comadre Florzinha é uma banda que escuto pouco, não tenho hábito. Mas isso não importa. Crítica não é isso. Comadre Florzinha foi uma banda criativa e inquieta.

Na real, parte disto que confesso se deve a falhas minhas mesmo, de formação do gosto, o que tende a gerar embolhamento, que tento furar, limite que todos e todas temos. Fui formado e deformado na música pop (rock, eletrônica dançante, rap etc), e de todas as bandas do manguebit, a Comadre Florzinha – depois “Fulozinha”; inclusive prefiro citá-las assim, feito a gente fala aqui – é a menos pautada pelo que foi gerado pela industrialização desenfreada e inchaço urbano de megalópoles.

De alegria feita de sol, Comadre Fulozinha trabalhava, assim como a Mestre Ambrósio, com a música popular do Nordeste, em especial o coco, gênero musical de prosódia quebrada em que muitas vezes o pandeiro dá o tom de tudo. Só que tem aquela hora onde o arrasta-pé de palhoção de São João domina o disco – melhores momentos pra mim. Várias faixas parecem feitas pra dançar junto, como num forró. Porém, mais que Mestre Ambrósio, Comadre Fulozinha me parece bem mais fidedigna em relação às referência que toma pra si. O conjunto não parece exatamente uma “tradução”, mas algo mais literal. E há em tudo uma paixão visível em relação à música que – até digo – reverencia. Ao meu ver, Comadre Fulozinha é a banda que mais leva ao pé da letra a ideia de que a música de matriz popular e tradicional é um fim em si, uma cultura que se basta.

Comadre Florzinha, o disco, é totalmente pautado na percussão, o ritmo é praticamente tudo nele. Uma quantidade grande de músicas são versões, 5 delas – as primeiras – sendo cocos e toada de origem alagoana. Em outras, quando a puxada é de forró, não é um forró exatamente rasgado, mas tá lá embolado na força do coco. Só que mesmo com tudo isso, mesmo sendo tudo muito rítmico e vigoroso, esse é um álbum que tem um lirismo bem bem forte ao mesmo tempo. Seria esse vigor com essa candura uma contradição em um gradiente de emoções? O que sei é que, ao ouvir, dá aquela vontade de dar um abraço – o que complica, né?, nesses tempos de coronga.

Olha, falo tudo isso, mas admito que não tenho armas pra fazer comparações que sejam um tiquinho só coerentes com esse álbum. Sim, sou de Pernambuco, mas se engana aquele que não é daqui se acaso ache que Recife é tipo um personagem com pandeiro entoando “poesia de repente”. É evidente, existe isso também. Só que Recife é uma cidade grande do Nordeste brasileiro, uma metrópole centenária ainda do período colonial, uma das mais antigas talvez da América Latina. São muitos sedimentos de cultura na mesma pisada da confluência dos grandes centros urbanos do mundo via o porto da cidade. Daí, como diria um amigo, quem vive numa metrópole meio que é um desgarrado, um “apátrida” – ou ao menos tende. Sou meio que isso mesmo, um “apátrida”. Discutir o manguebit nesse #Especial e fazer parte dessa cidade me empurram a colocar de lado a viseira e falar daquilo que de algum modo me é próximo. Afinal, cultura popular não é apenas rap e punk rock, né?

Pro meu ouvido colonizado pela música pop, fazendo comparações extremamente esdrúxulas, o disco tem, pra mim, algo do clima de uma Cat Power unida a um Violent Femmes. Não sei bem o porquê, mas eram as bandas que mais me saltavam enquanto escutava. Tentando traduzir, e seguindo esse paralelo nonsense, tanto Comadre Fulozinha quanto essas duas têm uma boniteza palpável, a banda sendo um misto da sanha gentil de quando a Cat Power tá foguete (só penso aqui em “Free”) + aquele clima de festa da Violent Femmes. Sempre que escutei Violent Femmes pensei no quanto a música do conjunto tinha a ver com a cultura popular estadunidense (sua terra), só que exacerbadamente pop e até feita pra tocar no rádio – qual é essa música popular donde parte o grupo, é algo pra que eu investigue ainda, mais na frente. Por sinal, Comadre Fulozinha – assim como o manguebit – só não tocou ou mesmo agora não toca maciçamente no rádio devido à monocultura autoritária do jabá, propina paga às rádios no Brasil, algo ainda hoje presente.

Para mais, é inevitável falar da dificuldade de conseguir informações sobre a banda na internet. O manguebit era um “Clube do Bolinha” do caramba, e a Comadre Fulozinha era uma banda composta integralmente por mulheres. Seria coincidência ser a menos comentada de todas? Acredito que não. Ademais, em Pernambuco – e no Brasil –, ao contrário do que os de fora do estado creem, rola uma espécie de diminuição daquilo que vem do povo, ainda colocado culturalmente numa chave folclorizante quando a produção é de raiz ancestral, mesmo que pra fora diga-se o contrário. A concentração em diversos aspectos é grande, da grana mas também política e simbólica. Assim como o povo negro e indígena, numa cultura centenariamente patriarcal, as mulheres seguem não tendo a devida projeção. Que o diga, historicamente, “Casa-Grande & Senzala”, do pernambucano Gilberto Freyre, livro que fala do Brasil a partir do Nordeste, cujo subtítulo diz tudo: “Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal”.

Aqui, pra mim, grita curiosamente o fato de que, de todas as bandas resenhadas nesse #Especial, Comadre Fulozinha é a que não possui uma letra sequer, umazinha, que reforce opressões a grupos já oprimidos, mesmo quando faz versões de composições alheias, o que poderia ser usado eventualmente como subterfúgio e cortina de fumaça pra erros e equívocos. Ao meu ver, é nítido o fato de que, no caso da banda, isso definitivamente não seja coincidência. No caso da banda, parece-me deliberado.

Ou seja, falar de Comadre Fulozinha é encontrar talvez uma trilha e saída crítica pra parte daquilo que ainda vivemos. Que esse futuro role agora.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Mestre Ambrósio [Matéria deste notável blog] | Violent Femmes, “Add It Up” | Cat Power, “Free” | Violent Femmes, “Promise” | O jabá, ainda hoje presente | Clube do Bolinha [Wikipédia] | “Casa-Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre [Fichamento pra facul] |

 

>FICHA TÉCNICA:

Comadre Florzinha era:
Alessandra Leão: Voz e Percussão
Isaar de França: Voz e Percussão.
Karina Buhr: Voz e Percussão.
Maria Helena Sampaio: Voz e Percussão.
Renata Mattar: Voz, Percussão, Sanfona e Sax.
Telma César: Voz e Percussão.

“Maré”, “Araúna”, “Roseira Di”, “Pirulito” e “Ô Papai” são, segundo o disco, faixas de “Domínio Público”; “Grande Poder”, música de Mestre Verdelinho; “Angicos”, música de Chico Science e Lúcio Maia; “Mais De Oito”, música de Renata Mattar, Telma César e Comadre Fulozinha; “Satuba”, música de Isaar; “Poica” e “Sapopemba”, músicas de Renata Mattar; “O Trem”, música de Karina Buhr, e “Cobra Verde”, música de “Domínio Público”; “Fulozinha”, música de Telma César; “Xiquexique”, música de Tom Zé e Zé Miguel Wisnik; “Tamarineira”, música de Elino Julião.

Gravadora: CPC-UMES.

Mundo Livre S/A, Samba Esquema Noise [BRA, 1994].

[PRA OUVIR, CLIQUE AQUI.]

 

Atenção: abaixo segue três textos diferentes escritos cada um por um autor diferente.

 

O futuro é uma câmara de gás hélio.
George SóSucesso Yeah!

Por mais que seja difícil de acreditar, houve um tempo em que a música no Brasil conseguiu libertar-se da hegemonia do circuito de produção do eixo Rio-São Paulo. E por mais paradoxal que possa parecer, essa quebra de monopólio veio justamente de um selo financiado pela Warner e das mãos da maior banda paulista de todos os tempos – os Titãs – e do produtor e futura celebridade Carlos Eduardo Miranda: o selo Banguela Records. Essa abertura deu oportunidade a bandas tão díspares como Graforréia Xirlamônica, Raimundos e Mundo Livre S/A de saírem de seus nichos regionais (Porto Alegre, Brasília e Recife) e alçarem o voo cego em busca de sucesso no mercado nacional. Dessas, a única banda a atingir o estrelato foi o Raimundos. As outras duas apesar do sucesso de crítica, amargaram baixas vendagens e um tímido sucesso comercial. No caso do Graforréia, essa ambição acabou por implodir a possibilidade de uma carreira brilhante. Já o Raimundos, hoje, é apenas uma vaga lembrança para a nova geração. De todas, a única a envelhecer com dignidade foi a Mundo Livre. O leitor inteligente pode argumentar facilmente identificando como principal razão o fato dessas bandas e seus respectivos discos terem ficado datados tanto no aspecto sonoro como em suas letras as quais reproduziam muitas vezes preconceitos e vícios de época. Por outro lado, os discos funcionam como instantâneos das dificuldades encontradas nos anos 90 pelas bandas alternativas de se sobressaírem em um cenário estagnado pela ditadura do jabá e o punho de ferro das majors. Talvez algumas dessas bandas quisessem mesmo ser grandes, algumas chegaram até perto de ser, mas para outras o que restou de fato foi ganhar o prêmio de consolação do fracasso comercial: o respeito da crítica e o status de cult.

E esse é justamente o caso da Mundo Livre S/A e seu disco de estréia Samba Esquema Noise. Apesar de ter tido sucesso relativo quando de seu lançamento, o disco acabou por agradar mais à crítica do que o público. Quase três décadas depois, a Mundo Livre continua sendo uma banda para críticos, porém, agora, com uma considerável legião de fãs amealhados durante suas quatro décadas de existência, alcançando esse entreposto comercial da musica pop brasileira ocupado por discos de artistas tão variados quanto Gal Costa (Fa-tal), Walter Franco (Revolver) e Pedro Santos (Krishnanda).

Na sua estreia no cenário nacional, o manguebit e seus criadores lançaram mão de todos os aparatos tecnológicos para justificar-se como movimento (manifestos, programa de rádio, entrevistas coletivas de lançamento, videoclipes) para não deixar escapar a oportunidade de furar a bolha do eixo Rio-São Paulo e alcançar o grande público. Porém, enquanto a Nação Zumbi optou por fazer uma jogada mais arriscada ao assinar com a Sony ganhando a produção de Liminha e o estúdio Nas Nuvens como bônus, a Mundo Livre optou por um caminho mais low-profile, ao fechar não com uma major, mas com uma subsidiária administrada por músicos (Charles Gavin do Titãs) e por Miranda, com um cast mais alternativo (Little Quail, Linguachula, Maskavo Roots). O que contribuiu para aura de banda não-comercial e com o legado de longa duração, bem mais consistente do que o de seus outros companheiros de casa.

Desde que Samba Esquema Noise foi lançado em 1994 com sua estrutura rítmica baseada em groove, praia, tamborim, cavaquinho e ostras que ficou evidente a influência da fase clássica de Jorge Ben. A começar pelo título em homenagem ao primeiro long play de Jorge Ben, Samba Esquema Novo, ao imaginário malandragem/fuleiragem/maresia, esse é um disco que deixa premente a sua missão de resgatar o samba-soul para os ouvidos galvanizados dos rockers e radicais do anonimato que esse gênero se encontrava no início dos anos 90. E nesse sentido, sua missão parece ter tido completo êxito. O novo trabalho de 04, Bactéria, Otto, Chefe Tony e Goró despertou em diversos moleques metidos à punks a curiosidade e a necessidade de entender a música brasileira para além do rockBR. Uma busca por algo muito mais denso e entranhado em nossa alma do que jamais o termo underground poderia sugerir. Graças a esse disco, não apenas Jorge Ben, mas artistas como Di Melo, Marku Ribas, Marcos Valle, começaram a ser reconhecidos por uma geração que havia sido isolada dessas obras devido ao jabá radiofônico nacional.

Samba Esquema Noise é a grande herança de Miranda e da titânica Banguela para um futuro que cada dia mais parece com uma câmara de gás, como canta 04 em “Homero, o Junkie”, só que cheia de hélio. Considerado um dos melhores discos dos anos 90, suas 660 horas de gravação traduzem o espírito de uma banda que após dez anos de espera sabia que estava diante de seu ponto de não retorno. Gravado no Be Bop, estúdio só não mais clássico do que o Nas Nuvens, o disco segue o caminho do pop radiofônico praieiro, misturando surf music e um gingado bubblegum ao samba-soul. Repleto de participações de estúdio como as de Naná Vasconcelos, Syang, Nasi do Ira! e muitos outros, o destaque do disco é dado pela guitarra/cavaquinho de 04, um feliz encontro entre D. Boon, do Minutemen, e Aborto do Cavaco. 04 consegue formar um bloco uníssono de timbres que em conjunto com os onipresentes grooves constroem a identidade rítmica única do álbum.

Mundo Livre, ao contrário da Graforréia, sobreviveu para superar o mero culto, não se transformando apenas em um bibelô da turma de 94. Suas intenções estéticas podem não ter se sobressaído ao público de seu tempo, mas o seu sucesso de crítica deu visibilidade no longo prazo ao projeto político-musical da banda que mesmo tendo sofrido com as intempéries de tantos anos de estrada (saída de músicos, troca de gravadora, mudanças do mercado fonográfico), continua firme em sua independência e prova que às vezes por mais que sejam uns bichos chatos pra c…, de vez em quando os críticos e jornalistas musicais acertam.

Mas só às vezes….

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Titãs | Graforréia Xirlamônica | Gal Costa, “Dê Um Rolê (Ao Vivo)” | Walter Franco, “Feito Gente” | Pedro Santos, “Quem Sou Eu” | Chico Science & Nação Zumbi [Matéria deste inopinado blog] | Little Quail | Linguachula | Maskavo Roots | Jorge Ben | Di Melo | Marku Ribas | Marcos Valle | Naná Vasconcelos | P.U.S., “Luxury” | Ira! | Minutemen | Aborto do Cavaco |

 

Mundo Livre S/A, quando o Noise inova o Novo.
Mateus SóSucesso!

De todas as bandas do manguebit, Mundo Livre S/A é a que mais ouço.

Há um motivo pra isso, acho. De todas, é a mais rock, base sonora que me abriu pro som. Falava-se muito da influência de Jorge Ben na Mundo Livre, e da música brasileira num geral, e eu, novinho, não conseguia ver. Achava o som comum, normal, nada demais. Mas também, pudera: era a época na qual eu achava Sex Pistols levinho, e só escutava de grind pra lá.

Anos se passaram, e com o advento do CD as rádios foram se desfazendo de seus acervos, e agarrando a deixa, eu ia traseirando ônibus pra comprá-los no precinho. Nessa, fui aos poucos catando os álbuns de Jorge Ben. O primeiro que catei foi o primeirão, o Samba Esquema Novo. Daí, na primeira escutada me perguntava: “O que que tem nesse som? Isso pra mim é bossa-nova, vey…” [cara de muxoxo].

E era mesmo. O estilo de João [Gilberto] havia influenciado Jorge. Mas não era só isso. Aquele balanço era particular demais, nem era samba, nem era bossa, nem era… rock. Na real, até hoje não sei onde realmente o rock tá ali, culpa certamente de meus ouvidos estragados pelo próprio rock. De qualquer modo, era inconfundível, e quanto mais discos eu tinha dele, mais impressionado eu ia ficando. Escutei e reescutei centenas de vezes o Samba Esquema Novo, assim como o primeiro do Secos & Molhados, o Transa de Caetano etc, discos que não me desceram logo de cara. Só que quando a ficha caiu, putz…

Pelo Twitter, Luiz Antonio Simas defende que o balanço de Jorge Ben é devedor de toque pra Oxóssi, ou seja, é um balanço influenciado pela religiosidade de matriz africana, algo que Ben tinha nítida consciência, tanto que em “Mas Que Nada” diz: “Este samba que é misto de maracatu / É samba de preto velho / Samba de preto, tu”. Como vários e vários daquele período que amavam João Gilberto, ele aumentou um ponto e foi além. Na real na real, Jorge Ben fez mais: Ben criou um mundo completamente próprio com seguidores até hoje, vide Emicida, Curumin… e Mundo Livre.

Pois é. Aquela falta de rock que eu sentia – isto é, de guitarra distorcida, ritmo total 4 por 4, vocal reto mas com pathos –, aparecia todo ali, na Mundo Livre. O rock do samba-rock de Jorge Ben, Mundo Livre expõe e intensifica. Uma fusão notória entre [The] Clash e Jorge, entre a agressividade de um e a ginga do outro, entre o tom de denúncia e a celebração do corpo e do sol, entre a alegria e a raiva.

Daí, um breve parênteses: não dá pra falar de Mundo Livre sem falar da letra, um dos ingredientes essenciais, herança do punk. Daí, chama logo atenção o tom crítico de muitas delas, de ironia e crítica da vida ordinária numa metrópole capitalista, algumas de forma cifrada, outras, aberta, tais como “Saldo de Aratu”, “Bola do Jogo”, a música-título (“Samba Esquema Noise”) etc. Essas até que envelheceram razoavelmente bem. Porém, outras…

Num artigo de título emblemático, “Leia, se for macho”, que retrata a imagem das mulheres na música pop da década de 1990 (mais especificamente no rock e no rap), Fred Di Giacomo lembra de uma canção da Mundo Livre no Guentando a Ôia cuja letra, em meio ao título sugestivo (“Tentando Entender as Mulheres”), afirma que “Todo homem deveria ter um carro / Ou senão nem precisava ter testículos etc”. Porém, aponto, a questão não estaria somente nesta letra ou somente neste disco. No Samba Esquema Noise, álbum desta resenha, quando a Mundo Livre não está negando os pressupostos de uma vida S/A, as letras fazem loas ao corpo e à sensualidade femininas como fonte e objeto reiterado do desejo masculino. Entretanto, como lembra Di Giacomo, na representação da cultura pop daquele período, “A regra era que mulheres ficavam famosas e eram admiradas por seu corpo e sensualidade e não por suas ideias e feitos”. Ou seja, isso que percebo não seria um caso isolado do Samba Esquema Noise ou da banda – o que não isenta ninguém, na real. Daí então isso me faz lembrar da confissão de Mano Brown num bate-papo sobre lugar de fala, dizendo que hoje rejeita tocar algumas composições mais antigas suas justamente pelo tom misógino. A realidade mudou bastante, e [nem tão] novos marcadores têm dado a tônica do debate público, vide um Roda Viva recente com Emicida em que a faixa “Trepadeira” é posta em xeque. Samba Esquema Noise é parte deste flow de época.

Para além, enquanto voltava a escutar o disco pra esta resenha, ia me dando uma vontade danada de ouvir de novo bandas da América Latina como La Maldita Vencidad, Gustavo Cerati (da Soda Estéreo) e Café Tacvba. Algo na Mundo Livre me provoca isso. Mas então surgiu “?”. Daí, meu palpite é que, mesmo misturando, a mistura da Mundo Livre não é ostensiva, assim como nas bandas e artistas que citei, que fazem música pop com elementos de seus próprios países, só que sem estarro, algumas mais outras menos sutis. Mundo Livre não é ostensivamente local, “de Recife”, de Pernambuco, não trabalha exatamente com as músicas tradicionais e muito particulares daqui. Talvez esteja aí o porquê da minha afirmação inicial, de que Mundo Livre soava pra mim “comum, normal, nada demais”. Seu som trabalha com o samba e com o samba de Jorge Ben, um samba depois do samba se tornar uma “tradição moderna” nacional, virar “uma dinastia”, conforme já disse Gil. Sua inovação talvez não seja gritante pra mim exatamente porque como todo brasileiro fui fortemente exposto ao samba como música de ninar, praticamente. E essa “dinastia” já passou por tantas reinvenções desde o tropicalismo, já foi tão feita e refeita e feita novamente, que pra mim Mundo Livre não parece uma novidade escancarada. Eu, frequentador de shows punks, berço e viveiro inicial da Mundo Livre.

Noves fora zero, Mundo Livre causou barulho tanto metafórico quanto ao pé da letra. Entortou Jorge Ben e processou pro momento presente. Trouxe pra ouvidos distorcidos. Ou seja, Mundo Livre fez do Novo, Noise [“Ruído”, traduzindo].

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Jorge Ben, “Chove Chuva” | Sex Pistols | Carcass, “Maggot Colony” | Jorge Ben, “Rosa, Menina Rosa” | João Gilberto | João Gilberto, influência de Jorge Ben [Jorge Ben Jor, Memória Roda Viva] | Jorge Ben, “Quero Esquecer Você” | Secos & Molhados | Caetano Veloso, “Nine out of Ten” | Luiz Antonio Simas [Twitter] | Jorge Ben, “Apareceu Aparecida” | Oxóssi (Agueré) | Jorge Ben, “Mas Que Nada”  | Emicida | Curumin | The Clash | Fred Di Giacomo, “Leia, se for macho” | Mundo Livre S/A, “Tentando Entender as Mulheres” | “Mano Brown e Francisco Bosco discutem lugar de fala e apropriação cultural” [YouTube] | Emicida sobre “Trepadeira” [Roda Viva]  | La Maldita Vencidad | Gustavo Cerati | Café Tacvba | “Filme desvenda músico anônimo” [Artigo da Folha de São Paulo sobre “O Homem que Engarrafava Nuvens”, de Lírio Ferreira] |

 

Mundo Livre S.A., Samba Esquema Noise (1994) – O manguebit que ama o samba que ama o rock que ama Seattle que não ama ninguém.
Aroldo SóSucesso!

Na música, a forma e o conteúdo são tão a mesma coisa que resumir uma crítica a dizer que uma peça musical ficou datada talvez seja ainda mais problemático que em outras artes. Porque geralmente se diz isso enquanto não se vê problema em amar Bach incondicionalmente. Então é óbvio que há modos e modos de envelhecer. Chico Science & Nação Zumbi, por exemplo, envelheceram pela superexposição, pelas associações simbólicas que a mudança dos tempos trouxe e, assim, eles ainda podem surpreender. Mais ou menos isso acontece também com Mestre Ambrósio, cujo som é tão calcado em especificidades culturais ainda muito territorializadas e autônomas que pode se expandir e chegar próximo ao universal. Comparado a esses dois, o que a Mundo Livre S.A. faz aqui soa muito preso às correntes da época em que foi lançado. É um álbum considerado por uma pá de gente boa como inovador, com sua mistura de samba e rock e provavelmente mais alguma coisa, e acho que foi mesmo.

O problema é que, em retrospecto, o terreno desbravado por Samba Esquema Noise pertencia já a um latifúndio. O problema não é ser datado, portanto, que é uma constatação tautológica, o problema é como se envelhece. Ao ouvir Samba Esquema Noise, a década de 90 me aparece sem viço, como um Dorian Gray desmascarado. Para mim, que vivi a década como roqueirinho, a música que veio como um comboio assim que o Nirvana escancarou os portões do mercado era o máximo da novidade. E era, na verdade, porque mudar para permanecer o mesmo não é só uma máxima para usar em “crítica social foda” ®. Os principais culpados por essa ilusão novidadeira não foram o Nirvana, claro, mas os Davids Geffen da vida, as grandes gravadoras e todo mundo que embarcou na onda sem pensar duas vezes.

A música da Mundo Livre S.A., ao menos aqui, por mais que seja entendida como fenômeno à parte, ainda parece fazer parte dessa engrenagem importada quando me lembra em iguais partes Jorge Ben e certos cacoetes guitarrísticos que invadiam o Brasil vindos do norte das Américas. Se ao menos soasse como as duas coisas ao mesmo tempo, taí algo que eu louvaria. Do jeito que está, não é bem um experimento desconexo, mas também não é o que Victor Frankenstein tinha em mente. É um som bem-apessoado, por assim dizer, feito para agradar tanto quanto o primeiro LP dos Raimundos, ambos gravados pela Banguela Records, ambos criados a partir de uma mesma visão musical com fixação por técnicas de produção que se confundiam com a própria música de modo tão na cara que deveria ter sido óbvio desde o começo que, assim que o verniz descascasse pela ação do tempo, a percepção do conteúdo mudaria drasticamente. Se eu ainda não deixei claro, tô querendo dizer que, pra mim, Samba Esquema Noise ficou preso na década de 90.

Muitos dos associados diretos começaram essa fase já sob o signo da decrepitude, como os Titãs, cujo Titanomaquia tentava emular o peso do grunge de Seattle, esquecendo que já faziam um tipo de peso, de visceralidade, muito deles, e virando pastiches de si mesmos. Mesmo eu adolescente percebi que tinha algo errado em Titanomaquia.

O que chegava aqui como a nova onda era pautado por guitarras agressivas. Ao mesmo tempo, certa riqueza pop baseada em mesclagens e reinvenções de gêneros, mesmo que ainda nascendo dos polos mais óbvios, só despontaria para meus ouvidos com atraso, abafada no Brasil pelas cenas alimentadas pelo Nirvana. Britânicos (mas um monte de americanos também) como My Bloody Valentine e A. R. Kane já despontavam no mercado ou na mídia usando a guitarra de modo menos fálico e havia quem, como Saint Etienne, até hoje seja vista como nota de rodapé, ainda que tenha misturado house e pop barroco de modo muito particular. Mas o ponto é que esses artistas não eram mais que extensão natural dos cerca de 15 anos anteriores de produção criativa que as grandes gravadoras desprezaram até então. O que acabou resultando na ideia idiota mas comum que se tinha no começo dos 1990 de que a década anterior era basicamente cafona e descartável.

Mas voltando: no Brasil dos anos 90, tudo parecia muito divertido e promissor. Forró e hardcore (Raimundos, 1994)? Por que não? Melhor ainda se não houver nem um nem outro, porque senão vai vender como? Quanto a Samba Esquema Noise, a gente vê que é muito bem produzido, com passagens marcadas por autêntica criatividade instrumental e duas, três músicas com pulso suficiente para não morrerem na memória, mas com melodias pouco marcantes para um álbum fundamentalmente pop, o que talvez explique em parte a pouca vendagem.

Mas há um problema mais sério: Samba Esquema Noise ficou em 1994 mais pelas letras que pela música. Fred 04 incorpora o malandro galanteador sem jamais levar em conta a subjetividade feminina e a mulher acaba parecendo mais um objeto de fetiche. A deusa de Samba Esquema Noise, o que é inclusive reforçado pelo videoclipe, não é a deusa que se cultua, mas a mulher a que se chama de “deusa” ou “princesa” pra ver se, vai lá, rola alguma coisa mais tarde. Usar eufemismos (o grande W de Wania) e ironia e justificar-se por licença poética tornam esse sexismo ainda mais irritante, porque é insidioso. A crítica social em versos líricos continua presente em quase todas as letras, mas mesclada ou, no mínimo, colada a um pensamento sexista cujo retrocesso, inclusive político, salta mais e mais aos olhos nos dias presentes. Esse, pra mim, na verdade, é que é o grande problema.

>>Pra sacar mais, clique no amarelinho:

Johann Sebastian Bach | Chico Science & Nação Zumbi [Matéria deste venerando blog] | Mestre Ambrósio [Matéria deste blog, a seu dispor] | “O Retrato de Dorian Gray”, de Oscar Wilde [Wikipédia] | Nirvana | Geffen Records [Wikipédia] | Jorge Ben | Frankenstein [Wikipédia] | Titãs | My Bloody Valentine | A. R. Kane | Saint Etienne |

 

>FICHA TÉCNICA

Mundo Livre S/A foi:
Fred 04: Guitarra, Cavaquinho e Voz.
Fábio Goró: Baixo.
Bactéria: Teclados
Chefe Tony: Bateria
Otto: Percussão.

Todas as faixas escritas e compostas por Fred 04, exceto “Livre Iniciativa”, música de Tony Montenegro e Fred 04 e letra de Fred 04, “Saldo de Aratú”, música de Mundo Livre S/A e letra de Fred 04, “Uma Mulher com W… Maiúsculo”, música de Mundo Livre S/A e letra de Fred 04, “Homero, o Junkie”, música de Fred 04, Fábio Montenegro e Tony Montenegro e letra de Fred 04 (inspirado no livro “2544 Cela da Morte” de Caryl Chessman), “Terra Escura”, música de Fred 04 e letra extraída de “O Eu Dividido” de R. D. Laing, e “O Rapaz do B… Preto”, música de Mundo Livre S/A e letra de Fred 04.

Gravadora: Banguela Records.
Distribuição: Warner.

Produção: Carlos Eduardo Miranda.
Gravação e mixagem: Beto Machado / Bob Mac (Estúdio Be Bop / São Paulo).

Participação em “Homero, o Junkie”: Nasi (vocalista do Ira!).
Participação em “Musa da Ilha Grande”: Mallu Mader (atriz).
Participação em “Sob o Calçamento (Se Espumar é Gente)”: Paulo Miklos, Nando Reis e Charles Gavin (Titãs), além de Gilmar Bola 8, Toca, Gira, Canhoto e Dengue (Nação Zumbi) e o produtor Apolo 9.
Guitarra em “Livre Iniciativa”: Syang (P.U.S.).
Percussão em “Rios (Smart Drugs), Pontes e Overdrives”: Naná Vasconcelos.